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31.3.04

A televisão de todos nós

Passei meses angustiado com aquilo. Que a RTP estava a mudar, sabia eu muito bem, até porque, de quinze em quinze minutos na emissão da “nossa televisão,” alguém se encarregava de mo lembrar. Mas a mudar como? E em quê? Parecia-me tudo na mesma.

O Fernando Mendes lá continuava a tentar aguentar a barriga na vertical durante a duração do “Preço Certo,” lutando ao mesmo tempo contra a vontade de engolir a montra de prémios completa com trem de cozinha, jetski e tudo. À tarde, José Carlos Malato continuava com Portugal no coração, acompanhado por uma Merche Romero viçosa que, para além de também ter Portugal no coração, de certeza conseguirá arranjar outra parte do corpo para acomodar a sua Andorra natal, já que esta, pelo tamanho diminuto e apesar de os países não se medirem aos palmos, cabe em qualquer cantinho (com a lubrificação adequada.)

O nariz de Júlio Isidro continuava imponente, o sentido de oportunidade de Sónia Araújo continuava afinado, a hilariante dupla Guilherme Leite-Luís Aleluia continuava a produzir material de levar às lágrimas qualquer contribuinte cumpridor, e até Francisco Mendes continuava a cumprir na perfeição o seu papel de filho de cantor famoso que ganhou um concurso num canal da concorrência e agora parece que apresenta não sei o quê por alma não sei de quem.

Onde estava, afinal, a diferença, perguntava-me eu.

Agora já sei. Estavam só à espera do 47º aniversário da RTP para nos maravilharem a todos com a magnitude das alterações que fazem da “nossa televisão” ainda mais “nossa” e ainda mais “televisão” (se alguém quiser aproveitar este slogan para spots promocionais, é favor contactar o 915550192).

Para começar, as novas instalações. O edifício sinistro e kafkiano da Avenida 5 de Outubro passa à história, substituído por um iluminado e arejado complexo no Parque das Nações. Para trás, ficam décadas de história com momentos tão marcantes como a inauguração das emissões a cores, o caso Manuel Subtil ou aquela notícia convenientemente abafada, ainda que verídica, do entupimento das canalizações do edifício provocado por uma acumulação monumental de preservativos deitados pela sanita abaixo.

O nome e o logotipo também não resistiram à onda de mudança. A empresa passou a chamar-se “Rádio e Televisão de Portugal,” engolindo a RTP e a RDP (esperemos que a RDP atinja rapidamente os padrões de qualidade e “serviço público” a que a RTP nos tem habituado). O logotipo ficou mais moderno. Mais... pujante. Gostava de o ver tatuado numa nádega de Serenella Andrade para melhor poder apreciar a modernidade do traço (desde que o seu pai, o director de programas, Luís Andrade, o autorize, claro está).

Mas as mudanças não se ficam por aqui. Depois há as outras, de natureza mais conceptual. Dizem vocês: “Mais mudanças ainda?! Mas esta gente quer fazer alguma revolução? Os portugueses não estão preparados para tanta mudança!” Estão pois. Quem aguenta Cavaco Silva como primeiro-ministro durante tanto tempo, está preparado para isso e para muito mais.

Depois de muitas horas de “brainstorming,” os especialistas contratados pela RTP para idealizar a mudança da estação, terão chegado a uma conclusão que só pode ser classificada como brilhante. Puseram tudo em papel. Enfiaram os preservativos pela sanita abaixo, puxaram o autoclismo e foram apresentar os resultados à administração. A solução era perfeitamente óbvia. A “nossa televisão” só precisa de passar mais tempo a falar de si própria e a louvar as suas qualidades. Era só isso que faltava.

Afinal de contas, a programação de qualidade já eles têm há muito com a conjugação ideal de decotes de Catarina Furtado com meios sorrisos de Jorge Gabriel (ambos pagos a peso de platina), aliada à estridência desafinada das “melhores vozes de Portugal,” aos olhos de coruja embalsamada (e com uma ressaca monumental) de Dani ou a programas do mais puro serviço público sobre, por exemplo, a história da RTP, as culpas de Emídio Rangel no estado a que a RTP chegou, a inocência de todos os outros culpados, os programas que a RTP fazia e que só agora se percebe que não eram nada chatos e enfadonhos e até educavam o povinho ou os programas que a RTP poderia vir a fazer no futuro mas não vai fazer porque não sabe como mas até fica sempre bem dar a entender que se tem projectos e que se pretende mesmo cumpri-los.

“Com que então, temos de falar mais na estação, não é?” terá perguntado o senhor administrador, ao que um dos “brainstormers,” algo melindrado por não conseguir perguntar por gestos ao membro do conselho de opinião mais próximo se tinha um preservativo à mão que lhe emprestasse, respondeu que sim senhor, que o português médio de classe média-baixa não tem grande sentido crítico e que, como tal, basta repetir uma coisa o número de vezes suficientes que ele acaba por começar a acreditar. “É limpinho, senhor administrador.”

Vai daí, foi só olhar para a grelha de programas e procurar um sítio onde desse para encaixar mais uns minutinhos de auto-promoção, o que deu algum trabalho porque, entre spots promocionais de 15 minutos subordinados aos temas “a RTP faz do mundo um sítio melhor,” “a RTP traz felicidade,” “a RTP aumenta o prazer sexual” ou “quem vê a SIC e a TVI é responsável pela morte de duas criancinhas em África a cada dez minutos” e os programas de tributo aos grandes profissionais que fizeram o passado glorioso da casa como o senhor Armando que uma vez apertou um parafuso na cadeira do professor Marcello (o outro, o que mandava mesmo) e evitou um escândalo, sobrava muito pouco espaço. Mas lá se conseguiu porque, quando a boa vontade existe, não há nada que uma pessoa não consiga mesmo que seja pôr a Luísa Castel-Branco a apresentar um concurso com perguntas de cultura geral.

E aí a temos. Renovada, fresca e a cheirar a cidadania. A nossa televisão. A nossa RTP. Sem taxas, com séries históricas assinadas por Moita Flores com muita actriz de mamas ao léu, com logotipo novo e a prometer um futuro grandioso. Resta desejar que as novas instalações contribuam para mais 47 anos de serviço público e que os canos não entupam tão facilmente. Parabéns, RTP.

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