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28.5.04

O meu amigo Zé

Conheço o meu amigo Zé há muito tempo. Desde que fomos colegas de liceu. Era um rapaz tímido e pouco dado aos folguedos próprios da idade. Andava muitas vezes sozinho e notava-se que se esforçava por escapar ao convívio com os colegas. Mesmo assim, comecei a falar com ele e acabámos por ficar amigos. Com o passar do tempo e, em parte, devido à minha influência, o meu amigo Zé foi-se tornado mais sociável. Depois ficámos em turmas separadas e só ia sabendo dele muito de vez em quando.

Soube mais tarde que o meu amigo Zé se tinha decidido a seguir Direito e até conseguiu entrar numa escola com uma certa reputação. Não passou lá muito tempo. A meio do primeiro ano, desistiu alegando "falta de vocação e disparidade inultrapassável entre o conceito ético-moral de Direito e a prática da advocacia." No ano seguinte, matriculou-se num curso de Sociologia de que desistiu passados dias, tempo suficiente para perceber que se tratava de uma “pseudo-ciência inócua” e foi para Filosofia (não teve de andar muito desta vez porque os departamentos ficavam no mesmo andar.) Ainda se aguentou por lá dois anos e tal. Agradava-lhe a discussão de conceitos nas aulas e o facto de, por vezes, conseguir superar e até contradizer a argumentação de alguns professores menos dotados, o que lhe fazia muito bem ao ego outrora tão maltratado.

Mas o meu amigo Zé também não tinha nascido para filósofo. Aborreceu-se com tanta conversa quando descobriu a militância política. Conheceu uns colegas que estavam ligados a um movimento político de extrema esquerda entretanto extinto. Não era bem um partido porque no manifesto (uma folha arrancada de um caderno e rabiscada de um lado e doutro) lia-se que “os partidos constituem parte integrante de um status quo que traduz a decadência da democracia ocidental.” O autor da frase, então mentor do movimento (só mentor, porque não acreditavam em hierarquias apesar de não serem propriamente anarcas, visto que consideravam a anarquia um “anticonceito”) afastar-se-ia deles algumas semanas depois quando começou um namoro com a filha de um banqueiro muito conhecido. Hoje é casado, tem dois filhos e gere uma agência de publicidade mantida com dinheiro da mulher.

Para melhor se poder dedicar à causa (ou a descobrir qual era a causa, ao certo), o meu amigo Zé abandonou os estudos para grande desgosto dos pais que ainda alimentavam a esperança de que as constantes mudanças de vocação e de curso o levassem à Medicina. Arranjou emprego numa livraria muito conhecida, que também tem secção de discos, para ganhar dinheiro que pagasse a sua parte do aluguer de uma cave com dois quartos em que vivia com três companheiros ideológicos e com o cão de um deles a que tinham mudado o nome de “Piruças” para “Trotzky,” assim mesmo com Z em vez de S. Divertiam-se muito sempre que alguém perguntava o nome do animalejo e eles respondiam. Nunca ninguém percebeu porquê, o que só os fazia rir mais.

O movimento acabaria por se auto-dissolver por alturas de um campeonato do mundo ou da Europa e porque os seus membros passavam tardes inteiras a ver todos os jogos que davam na televisão, fazendo uma ronda pelos cafés da cidade que vendessem cerveja, esquecendo-se de ir às reuniões em que era suposto discutirem os motivos da situação actual e os métodos mais adequados para passar à situação seguinte que se esperaria melhor ou, pelo menos, não tão má como a presente. O único companheiro que não cedeu foi uma rapariga, que representava os interesses femininos no grupo, mas também não fez grande diferença porque foi mais ou menos na altura em que ficou grávida de um maoísta que participava nuns debates que organizavam de vez em quando com gente de outras correntes ideológicas (inferiores, claro) e que foi viver com um tio na Venezuela mal soube, forçando a jovem mãe a casar com o primeiro palerma que lhe apareceu à frente, neste caso, um bate-chapas amigo de infância e com muito boa reputação lá no bairro de ser um homem sério e trabalhador mas que era feio como os trovões e mal sabia escrever o próprio nome. Hoje, tem quatro filhos e vem outro a caminho (nunca se descobriu que o primeiro tinha sangue maoísta), o marido bate-lhe com frequência mas já se habituou e até é especialista em disfarçar hematomas. (Para quem gosta de ficar com os pormenores todos, o maoísta perdeu-se na Amazónia e nunca mais foi visto. Dizem que foi resgatado por uma tribo de índios junto dos quais promoveu uma revolução cultural mas desistindo da economia socialista que, fique a saber-se, não funciona em sociedades paleolíticas).

O meu amigo Zé sente-se bem no seu emprego e não considera que seja um mero posto de assalariado. Diz aos que querem ouvir, e também aos que não querem mas disso não se livram, que se realiza mais assim, “a lidar com cultura sólida e palpável que todos os dias arruma nas prateleiras” do que com qualquer cursozeco académico que só serviria para fazer dele mais um licenciado alienado da “verdadeira essência das coisas.” Porque o meu amigo Zé é uma pessoa da cultura. É vê-lo a rir-se na cara de pessoas que lhe perguntam onde está o livro tal ou o disco xis, dando a entender (ainda que não entendam, mas aí é problema deles) que a sua escolha e o seu gosto não são correctos e que se devem esforçar ao máximo para os mudar ou, simplesmente, deixar de vir ali chatear quem tem mais que fazer do que aturar coisas destas.

Foi precisamente nesta livraria que vi o meu amigo Zé, ao fim de muitos anos, no desempenho dos seus deveres profissionais e culturais. Saudámo-nos efusivamente, trocámos resumos do que de mais marcante tinha acontecido a cada um nos últimos anos e perguntou-me que livro levava a caminho da caixa. Respondi e vi-lhe um sorriso condescendente. Perguntei-lhe então eu se já tinha lido o livro em questão ou se conhecia alguma coisa do mesmo autor e disse-me que não, que não lia best-sellers. Perguntei porquê e explicou-me que a literatura comercial não era o que mais lhe interessava. Disse que estava com pressa e fui-me embora. Ele para lá ficou a tirar DVDs do Fernando Rocha de uma caixa e a enfiá-los na letra F da prateleira que dizia “Comédias.”

Alguns meses depois, voltei a ver o meu amigo Zé num cinema onde costumam passar filmes que já saíram do circuito comercial. Estava com uma rapariga desengraçada e amareliça com óculos de lentes grossas e riam-se muito alto. Fingiu não me ver mas, ingénuo, lá fui falar com ele. Perguntou-me se vinha ver o filme. Disse que sim. Perguntou-me o que achava do realizador. Disse que gostava e que até já tinha visto este filme mas preferia o anterior, o tal que tinha sido nomeado para um Óscar. A amiga riu-se e ele também, acrescentando que “os Óscares são a panaceia do cinema contemporâneo submetido ao comodismo burguês.” Não respondi e, quando pensava em justificações para me afastar, perguntou-me qual o último filme que tinha visto. Tornei a responder e tornaram a rir-se. Desta vez, porque ele não me sabia tão “mainstream.” Não pedi explicações mas também não seria preciso. Fez-me ver que se tratava de uma produção de Hollywood e desafiou-me a contestar a afirmação de que “a validade plástica do cinema enquanto arte se afastou de tal maneira da estética hollywoodesca que os filmes que por ela são concebidos estão inteiramente desprovidos de contextualização simbólica.” Eu disse qualquer coisa que não se encaixava ali e voltou o sorriso condescendente. Felizmente, as portas da sala abriram-se e despedimo-nos. Antes, ainda me deu a morada do seu blog.

Não me surpreendeu que o meu amigo Zé estivesse representado na blogoesfera. Visitei-o online e li algumas das entradas mais recentes. Uma das que mais me chamou a atenção era a resposta a alguém que tinha dito qualquer coisa noutro blog a respeito do que tinha dito certo blogueiro afamado que se desconfia ser figura conhecida do mundo da política. O comentário terminava com uma citação de um escritor francês com dois erros de grafia e um de concordância de género.

Há pouco tempo, por portas e travessas, fiquei a saber que o meu amigo Zé, com quem não me voltei a cruzar, pretende casar-se em breve com a tal rapariga de óculos de lentes grossas ou outra qualquer parecida. Diz a toda a gente que não acredita no casamento e que o fará apenas, de comum acordo com a futura e afortunada esposa, como “manifestação performativa com inspirações dadaístas notórias” em protesto contra a imutabilidade das estruturas familiares judaico-cristãs. Fiquei também a saber que pretendem sair do país, que consideram “estagnado de forma revoltante e irreversível sobretudo ao nível das esferas intelectuais” e ir morar para a Europa de Leste, talvez na Bulgária ou na Roménia, onde viverão da venda dos quadros que ela pinta até ele conseguir notoriedade como poeta, a sua derradeira vocação. Ao que parece, publicou um livro de poesia com várias páginas, quase todas contendo letras, que recebeu críticas muito boas (uma delas, a melhor, é de um dos ex-companheiros do movimento político que voltou a reencontrar numa exposição de fotografia depois de muitos anos). A viagem ainda não está marcada mas ficará para depois do casamento, cuja data também ainda não se conhece. Amigos comuns, que por circunstâncias da vida, acabaram por ficar a conhecer melhor o meu amigo Zé do que eu próprio, dizem-me ser altamente improvável que se case ou que vá para fora. Parece que o amigo que lhe elogiou a obra poética tem um amigo que conhece alguém que lhe pode arranjar uma posição como cronista num conhecido jornal diário propriedade de um grande grupo empresarial que tem no cimento o seu principal ramo de actividade. Também se diz que é bastante provável que aceite e até há quem adiante que já o ouviu comentar que “não é uma rendição ou uma abdicação de valores mas sim o aproveitamento de uma oportunidade ímpar para minar o sistema por dentro.” Fala-se num ordenado com muitos zeros. E a rapariga de óculos de lentes grossas já se tem queixado de que ele a trata mal por achar que se acomodou e que já não revela "o mesmo espírito crítico e poder de encaixe dos primeiros tempos."

Tudo parece correr-lhe bem mas, apesar disso, o meu amigo Zé tem um grande problema.

É que o meu amigo Zé não existe. E ainda bem.

14.5.04

Eu gosto de Fátima

Podia ser uma declaração de amor platónico pela martirizada (e sexy, sejamos sinceros, a mulher só com a voz faria Sua Santidade o Papa ter uma erecção) ex ou actual ou futura presidente (possivelmente as três coisas ao mesmo tempo) da câmara municipal de Felgueiras. Mas não é. Fica para outro dia.

Falo da outra Fátima. Da que tem uma capelinha das aparições em vez de um saco azul e um apartamento com vista sobre Copacabana. E não é pelo pitoresco da coisa nem por convicção religiosa que manifesto a minha afeição. Considero que Fátima desempenha, e tem desempenhado ao longo das décadas, um papel profiláctico na sociedade portuguesa e que esse papel se tem mantido inalterado com a passagem dos anos e com todas as mudanças que o país tem atravessado.

A profilaxia de que falo faz ou fez-se sentir de várias formas. Comecemos pelo princípio. Tudo começou quando três jovens pastores de nome Lúcia, Francisco e Jacinta foram surpreendidos no desempenho da sua actividade pastoril por uma aparição de Nossa Senhora.

A aparição apresentou-se, disse ao que vinha e a partir daí a história é sobejamente conhecida. Não pretendo discutir a veracidade da aparição. Não sendo propriamente uma pessoa de fé, acredito no entanto que existem fenómenos que não podem ser explicados pela ciência e que três crianças analfabetas de um meio pobre e atrasado vejam uma mulher que permaneceu virgem depois de ter concebido e dado à luz um carpinteiro robusto a flutuar sobre uma moita envolta em luzes, estando morta há mil anos, é precisamente o tipo de coisa em que não me custa nada acreditar.

Mas e se a aparição não tivesse existido? Francisco e Lúcia cresceriam para se tornar gente rude do campo como os seus pais e avós. Casariam, teriam filhos, morreriam de velhos. Os seus nomes seriam lembrados apenas pelos familiares. Hoje, e apesar de terem morrido de doença em idade tão tenra, são beatos venerados por católicos fervorosos em todo o mundo. Com um pouco de sorte e vontade milagreira, chegarão a santos em breve.

Quanto a Lúcia, a mais activa no diálogo com a santa, trata-se obviamente de uma mulher de ambição. Se não tivesse visto a virgem mais improvável da história da humanidade a equilibrar-se sobre uma azinheira, teria seguido o caminho dos seus primos. Teria casado, teria sido mãe. Ao longo da sua vida, é provável que tivesse ouvido falar de D. Sebastião, o mítico rei que voltará a Portugal envolto em nevoeiro (ainda não foi hoje, amigos, esperem mais uma semana ou assim). Em vez de ver santas, a sua imaginação prodigiosa fá-la-ia acreditar ser ela a reencarnação do rei desejado, enviada à Terra para salvar o país da perigosa república ateia que o governava. Reuniria seguidores. Os seguidores armar-se-iam. Derrubariam o governo. O movimento espalhar-se-ia a Espanha e, em seguida, a todos os países do mundo católico e até ao mundo herético que descobriria a verdadeira fé pela força se preciso fosse.

Em alguns anos, o planeta inteiro seria governado por uma ditadura cruel, férrea e beata em que a reza do terço três vezes ao dia seria mais importante do que as refeições, em que a missa seria uma obrigação diária, sendo as faltas punidas com flagelação na praça pública, em que a Bíblia, o catecismo, os missais e obras piedosas sobre a vida de santos seriam os únicos livros permitidos, em que quem não aceitasse submeter-se acabaria queimado na fogueira (nem tudo seria original, portanto). E, à cabeça de tudo, sentada num trono dourado com almofadinhas de veludo para acomodar o seu amplo e piedoso traseiro, Lúcia contemplaria o império de fé e caridade cristã que tinha construído.

Estamos melhor assim, não estamos?

E foi tudo evitado pelas aparições.

Rebuscado?

Pouco realista?

Talvez. Mas não precisamos de ir tão longe para falar do tal papel profiláctico. Limitemo-nos à realidade contemporânea.

Todos os anos, milhares de pessoas de todo o mundo vão a Fátima, movidas pela fé em Nossa Senhora e no milagre e fazem-no praticamente desde o início, desde o ano de 1917. Desde essa altura, milhões de portugueses e gente de fora terão ido a Fátima. Uma boa parte destes devotos faz promessas e paga-as das maneiras mais diversas. Há quem queime um peso várias vezes superior ao próprio em cera (sob a forma de velas de vários tamanhos ou de partes do corpo), há quem se desloque a pé do outro extremo do país, chegando ao destino com os pés num tal estado que o próprio Cristo flagelado e crucificado (mesmo o Cristo de Mel Gibson) diria “Bolas... isso está mau, hã?” Há outros que se arrastam de bruços pelo chão ou de joelhos, ou fazendo o pino ou apoiados na extremidade do nariz.

O que cada qual faz com o corpo só ao próprio dirá respeito mas uma coisa é indiscutível. As pessoas que fazem isto são gente perigosa. Compreendo que muitas o fazem por desespero e porque já não têm mais nada a que recorrer para curar doenças ou resolver situações pessoais desagradáveis. Também sei que a maior parte é gente sem grande capacidade cerebral, como os devotos cegos de qualquer religião, e que não sabem mais do que aquilo.

Mas isso não invalida o que antes disse. Seja por culpa própria ou alheia, são gente perigosa. Quem se arrasta de gatas de Viana do Castelo a Fátima também é capaz de pegar numa espingarda, ir para um mercado e desatar aos tiros. Quem gasta uma fortuna para mandar fazer uma réplica do próprio corpo em cera e em tamanho natural, também não terá qualquer tipo de problema em abrir os cordões à bolsa para financiar a investigação e desenvolvimento de uma bomba nuclear de capacidade destrutiva superior à de todas as existentes.

Sendo assim, viva Fátima e o seu santuário altaneiro! Enquanto estiverem ocupados a aleijar-se a eles próprios, não estão a aleijar ou a contribuir para aleijar terceiros que não têm nada a ver com os problemas deles e também terão os seus tão ou mais graves.

E depois há os padres. Segue-se um momento de dissertação anti-clerical pouco fundamentada por isso, quem tiver alguma coisa contra é melhor parar de ler por aqui.

Em Fátima, existe uma maior concentração de sacerdotes do que em qualquer outra parte do país, o que constitui um perigo incontornável (excluo as freiras porque são relativamente inofensivas fechadas nos seus conventos ou a dar catequese no meio da floresta tropical e só pensam em evangelizar o próximo e em técnicas masturbatórias originais).

Em qualquer sítio com uma tal concentração de padres católicos, a inquisição pode acontecer a qualquer altura. É a lei da natureza e tão infalível como dizer que se formos enfiando crocodilos no mesmo charco e não os alimentarmos, eventualmente, estes vão começar a devorar-se uns aos outros. Os padres não se devoram uns aos outros. Pelo menos, apenas alguns o fazem e acredito que sejam mais meigos do que os crocodilos mas é dar-lhes tempo e poder e, mais década, menos década, vamos ter autos de fé, tribunais do santo ofício, confissões arrancadas à força de ferros em brasa e práticas de igual colorido.

Mas, mesmo assim, é preferível que ardam uns quantos peregrinos que se atreveram a entrar na basílica expondo os cotovelos de forma pecaminosa ou que digam “Oh diabo, está calor” numa tarde quente de Agosto do que haver mais paladinos da fé libertos das obrigações relacionadas com a administração do santuário e com a contagem do dinheiro resultante da venda de santinhos e imagens de Cristo a três dimensões para reforçar as fileiras da cruzada contra o preservativo e o aborto porque o vírus da SIDA (e das outras doenças menos mediáticas) também é uma criatura de Deus e porque o Criador gosta de ver o mundo que criou bem povoado por indigentes esfomeados que lhe lembram os bons velhos tempos em que meia dúzia de almas privilegiadas se sentavam em cadeirões confortáveis enquanto o resto esgravatava no lixo por uns pedaços de imundície menos repelentes e mais comestíveis, dizendo que sim a tudo e nunca questionando nada.

Bem haja, Lúcia. Bem haja Francisco e Jacinta lá no jardim de infância do paraíso.

Termino com uma sugestão. Não sei se é original ou não mas também não estou a tentar parecer perspicaz ou engraçadinho. Só digo isto porque acho que é uma boa ideia e gostava muito de a ver concretizada.

Existe no santuário de Fátima, percorrendo a praça principal, uma faixa de pedra polida que ali foi instalada para facilitar o caminho aos peregrinos de joelhos e de bruços e a quem alguém (creio que Manuel João vieira) chamou “joelhódromo.”

É verdade que Fátima recebe muitos visitantes mas não o é menos que a maior parte são inevitavelmente católicos praticantes ou quase. Para que os ateus, os heréticos, os CNP (católicos não-praticantes) e os crentes de outras religiões comecem a acorrer a Fátima e a beneficiar também eles daquele ar místico que tão bem faz aos humores, é necessário que haja motivos de atracção.

Os devotos têm o santuário, a área comercial, o local das aparições, a casa dos pastorinhos, o museu de cera. Por que não instalar uma ou mais faixas de pedra polida ao lado da que existe e organizarem-se corridas? Até se podiam fazer apostas, o que resultaria em mais receitas para o santuário continuar a sua obra de... de... bom... de fé, suponho.

4.5.04

Portugal, um país de amores

O amor é uma coisa linda. Não é? Ora olhem para o cortejo de amigos que rejubila com a libertação de Carlos Cruz. Desde Fialho Gouveia sempre com aquela fidelidade inabalável aos amigos e convicção plena da sua inocência (João Vale e Azevedo que o diga), a Cinha Jardim que não perdeu tempo em vir “dar um beijinho” ao amigo ou Lili Caneças que admitiu “não ser particularmente amiga de Carlos Cruz” mas que apareceu na mesma porque, para aparecer na televisão, dá o cu e oito tostões. (Poucos saberão mas a mediática cirurgia plástica a que Lili se submeteu há algum tempo teve o objectivo de a dotar de mais cus do que aqueles de que a natureza a dotou originalmente para os poder trocar por momentos efémeros de exposição mediática. Para os tostões necessários, conta com a generosidade de amigos mais abonados financeiramente).

E o amor do molho de jornalistas que esperava Cruz à porta da prisão e o escoltou generosamente até casa? Digo “molho de jornalistas” por não me recordar agora do substantivo colectivo adequado mas deverá andar algures entre a vara e a cáfila. É amor verdadeiro. Não só pelo apresentador injustiçado mas também por nós todos, espectadores involuntários desse grande espectáculo que é a vida, dependentes em último grau do trabalho jornalístico para sabermos o que se passa lá fora, o tempo que vai fazer na próxima semana, quem subornou quem, quem matou e quem foi morto, que jogador de futebol foi apanhado a conduzir bêbado, que ministro foi apanhado numa casa-de-banho pública com a mão enfiada nas calças de um assessor.

Temos a sorte de viver num país em que se dá tamanha importância ao amor. A Alemanha é um país próspero mas os alemães colocam a organização acima de qualquer outra coisa. A Inglaterra é dos países mais influentes do mundo mas os ingleses só se preocupam com chá e biscoitos. A Itália... bom... a Itália não. Mas o Japão domina a tecnologia de ponta a nível mundial e os pobres japoneses têm de viver numa sociedade em que o sucesso profissional se sobrepõe a tudo. Até ao amor.

Nós temos sorte. Podemos viver num país pobre e atrasado onde Teresa Guilherme é considerada um exemplo entre as mulheres de carreira (em termos profissionais, não falo de prostituição) e onde Francisco Pinto Balsemão é apontado como empresário de sucesso (em termos profissionais e também na prostituição) mas depois, temos o lado positivo para compensar.

Os portugueses amam e gostam de amar. E esse amor está presente em todos os aspectos do quotidiano nacional mesmo que passe despercebido ou pareça contraditório. Pode haver violência doméstica mas há amor. Quando o marido chega a casa bêbado e parte o nariz à mulher porque perdeu na sueca com os amigos, há ali muito amor. Quando um condutor decide entrar numa auto-estrada em sentido contrário e acelerar, fá-lo por amor. Quando José Cid se deixa fotografar todo nu com um disco a cobrir as partes pudendas... é... não sei bem o que é. Mas de certeza que também haverá amor ali algures (se calhar, escondido atrás do disco, prefiro não pensar muito nisso).

E depois temos pessoas que personificam esse grande amor português. Pessoas como Tomás Taveira, um homem cujo amor é tão extenso que se viu forçado a partilhá-lo com o mundo, o que todos lhe agradecemos porque o fez numa altura em que o mercado da pornografia profissional atravessava uma crise criativa e mais lhe agradecerão os fabricantes do óleo Johnson’s porque tiveram direito a publicidade inesperada e gratuita.

Ou como o próprio Carlos Cruz que hoje regressa ao conforto do lar. Um homem que espalhou amor pela televisão durante décadas. Que nos deu muito mais do que uma, duas ou mesmo três razões para lhe conferirmos o merecido título de “senhor televisão.” Um homem que acabou prejudicado pelo amor que deu ao mundo.

Acusam-no de ter molestado sexualmente crianças à guarda de uma instituição que deveria zelar pelo seu bem-estar e educação. E eu pergunto: molestar não é também amar? Praticar o coito anal com uma criança de oito anos não é prova de amor? Sem dúvida que sim. Porque quem viola, abusa, molesta, também ama. E tratando-se de amar desta forma crianças que vivem em meios degradados com famílias problemáticas, mais valioso se torna o gesto porque, se há coisa de que estas crianças precisam, será de amor, venha esse amor sob a forma de uma educação esmerada, do auxílio na escolha de uma carreira profissional, de carinho ou de manipulação genital.

Poder-se-á prender alguém só porque uma criança ou jovem perturbado se lembra de dizer que tal ou tal figura pública dele abusou sexualmente. Será isto motivo para destruir o bom nome de alguém que lutou toda uma vida para o construir?

Quando se tenta fundamentar acusações pérfidas como esta é que se compreende até que ponto são frágeis. A criança que diz que foi abusada não consegue descrever com minúcia científica cada centímetro quadrado do corpo do seu agressor. Não consegue indicar o nome completo, profissão e local de residência do alegado agressor. Apesar de conseguir descrever com algum rigor o local do abuso, não sabe o código postal respectivo. E quando confrontada com as contradições do seu discurso, gagueja, contradiz-se ainda mais, chora e acaba por dar o dito por não dito, como se padecesse de algum problema emocional ou não tivesse maturidade intelectual suficiente.

Acabe-se de uma vez por todas com esta palhaçada.

Libertem-se os inocentes e façam-se os possíveis para limpar a sua imagem. Apresentem-se pedidos de desculpas. Faça-se o que tem de ser feito. Castiguem-se os mentirosos e os caluniadores com severidade, qualquer que seja a sua idade e sem ligar a circunstâncias atenuantes.

E, quando tudo isto tiver chegado ao fim, quando o apresentador e o deputado e o médico e o advogado e o embaixador e o humorista e os outros todos de que se falou e aqueles por quem poríamos as mãos no fogo mas que também estão metidos no assunto até ao pescoço, quando todos estes se reunirem numa casa de persianas corridas e longe de olhares maldosos numa terreola obscura para a grande orgia pedófila comemorativa do regresso ao status quo, então, com um adolescente imberbe nu sentado em cada perna, os homens íntegros deste país sorrirão e perceberão que o pior já passou. E então, o amor voltará a fluir livremente mais uma vez.

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