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27.9.04

Indignados e Ofendidos

O português gosta de ver. Somos um povo de mirones. E a coisa não é de agora. Quando as nações da Europa se degladiavam na segunda guerra mundial, nós assistíamos e íamos colaborando com os dois lados alternadamente, dependendo do lado que parecesse ter mais hipóteses de ganhar numa dada ocasião. Quando os nossos vizinhos da União Europeia evoluíam, nós olhávamos e tentávamos perceber como era possível investir o dinheiro dos fundos estruturais sem comprar um único jipe, sem mandar construir uma única vivenda com piscina.

E esta característica que temos entranhada nos genes reflecte-se na vida de todos os dias. É isto que faz os portugueses pararem na auto-estrada para ver um acidente, comentar que “este foi dos grandes,” contar os mortos e feridos e, com sorte, ver uma poça de sangue ou um rim ainda quente espalmado no asfalto. E quem fala em acidentes de viação, também poderia falar em suicídios, discussões, zaragatas de rua, ataques epilépticos ou crises de diarreia na via pública. Tudo isto é espectáculo para o português médio e, pormenor sempre agradável, costumam ser de graça (pelo menos, até alguém se lembrar de começar a cobrar, o que poderia ajudar a resolver o problema da dívida pública).

Claro está que não pretendo dizer que todas as pessoas que se amontoam para assistir a este tipo de “performance” são iguais e que todas se comportam da mesma maneira, satisfazendo instintos voyeuristas animalescos a que não conseguem resistir. Pelo contrário, comportam-se de maneiras diferentes. Há o mirone assumido, ou seja, o mirone que vê alguém no parapeito de uma janela do sexto andar e pensa “Eu vou ficar a ver isto!” e depois há o mirone dissimulado que vê alguém atropelado pelo canto do olho e que se convence de que o facto de ter feito um desvio de duzentos metros para passar por ali foi acidental.

Isto vem a propósito da “notícia do momento.” Parece que morreu uma criança algures no Algarve e, ao que tudo indica, terá sido a mãe e um outro familiar os responsáveis pela morte. Já houve confissão mas o corpo não aparece.

E pronto.

Limita-se a isto o conteúdo informativo da questão que possa interessar à opinião pública. Nem sequer é uma notícia particularmente importante. Infeliz com certeza. Importante não.

Que alguns órgãos de comunicação (a maior parte) transformem este assunto numa espécie de causa nacional não deverá surpreender ninguém até porque, olhando para acontecimentos passados, torna-se quase obrigatório este tipo de comportamento necrófago da parte de quem deveria informar o público e não limitar-se a satisfazer-lhe o gosto por sangue e tripas.

O que choca, sem surpreender, é o comportamento do “público” (em gíria jornalística, toda a gente que não é jornalista ou alvo da atenção dos media) em tudo isto. Deveria fazer-se um estudo científico sério que tentasse perceber os motivos que levaram tanta gente a rodear o tribunal em que os alegados culpados do crime seriam ouvidos (comportamento que se repete sempre que há casos passíveis de suscitar um grau semelhante da chamada “indignação popular”). Que raio fazia aquela gente lá? Estavam a ver? Mas a ver o quê? Esperavam captar um vislumbre dos “pérfidos assassinos” e a seguir voltavam à sua vida sentindo-se realizados? Quereriam furar o cordão policial e fazer justiça pelas próprias mãos? Isto talvez não porque vai contra a natureza do mirone. O mirone vê mas não faz nada.

Num canal de televisão qualquer, uma mulher com cabelos brancos que deviam ser sinal de sensatez adquirida com os anos, afastava-se da porta do tribunal depois de ter falhado na sua tentativa de se aproximar dos suspeitos. Ao ver que era seguida por uma câmara, começou a falar. Não estava ninguém a seu lado, logo, depreende-se que ou era um desabafo ou estava mesmo a falar para uma multidão de espectadores potenciais. Eis, mais coisa, menos coisa, o que disse: “Não têm vergonha. Fazer uma coisa destas a uma criança. Uma criança inocente. Uma mãe fazer isto a uma filha.” E a seguir, ergueu os braços e começou a gritar de forma histérica: “Assassinos! Ai! Assassinos!” como se tivesse acabado de cair num transe místico, possuída pelo espírito padroeiro da justiça popular. O que aconteceu depois já não foi possível ver. Mas não me custa acreditar que a indignada senhora tenha recuperado a compostura mal a câmara foi apontada para outro lado e que tenha ido à sua vida, sem se esquecer de avisar as vizinhas e conhecidas para assistirem à sua prestação televisiva com um orgulho perfeitamente justificado.

Noutro “serviço noticioso,” um grupo de populares rondava um baldio onde a polícia procurava o corpo da criança brutalmente assassinada. Foram chamados a opinar dois desses populares. Um, um homem calvo e de óculos, disse, sem conseguir disfarçar um largo sorriso e em jeito de justificação pela sua presença ali, qualquer coisa como: “Então... eu sei que a miúda desapareceu... e vim aqui... prontos... porque gostava que ela aparecesse... morta ou viva.” Acrescento eu: “de preferência morta porque o pesar justiceiro tem sempre mais valor mediático do que o alívio indignado.” O outro popular era uma mulher de meia idade que disse saber o que custava, que também era mãe e que, em sua opinião, “bateram-lhe até a matar e depois levaram-na morta para um sítio desses e deitaram-na ao rio. É o que eu acho.” Muito obrigado por essa prova incontornável de que dentro de cada dona de casa há uma autora de policiais em potência. O pior é o maldito analfabetismo funcional.

Numa outra reportagem, dava-se conta dos esforços de grupos de populares que recusavam dar a cara por medo de represálias (não se sabe de quem, talvez da Irmandade Internacional dos Assassinos de Crianças que sempre vinga os seus membros) para encontrar o cadáver. Viam-se imagens de gente anónima, filmada de longe a bater com varapaus em moitas. Uma mulher de cara oculta e voz distorcida confia-nos que “enquanto for aqui e ali nas canas ainda vá, agora se atiraram com ela para dentro de água, já não podemos fazer nada.” Um esforço louvável. Mas um esforço louvável para fazer exactamente o quê? Qual o objectivo? Pensarão que, já que a polícia não consegue nada, mesmo tendo experiência profissional de lidar com este tipo de coisa e tendo acesso aos depoimentos dos suspeitos, o melhor é começar a procurar em todo o lado porque nunca se sabe se debaixo de uma moita de aspecto inocente não se ocultará uma vítima de homicídio? E o melhor é cada qual começar por procurar no seu próprio quintal. Ou debaixo da cama. Nunca se sabe. Por enquanto as buscas limitam-se à aldeia onde o crime terá ocorrido e arredores. Espera-se que comece em breve uma busca intensiva a nível nacional em que cada português será chamado a participar. Quem achar o corpo ganhará um fabuloso automóvel topo de gama.

Talvez o que choque não seja este tipo de comportamentos. Talvez seja absolutamente normal. Fruto de uma necessidade de tornar as desgraças pessoais mais suportáveis quando colocadas em relação com as desgraças do outro. Quando alguém passa o dia ocupado num emprego que odeia, regressando para uma casa que detesta, para uma mulher de quem nunca gostou, para filhos que não sabe a quem saíram tão estúpidos, para um clube que nunca ganha e para os pensamentos perturbadores que lhe surgem sempre que vê os colegas mudar de roupa no balneário da fábrica, talvez se compreenda que alguém nestas condições pense “Sim senhor. A minha vida é uma valente merda. Mas pelo menos não fui atropelado por um comboio e não tenho os miolos espalhados pelo chão como aquele tipo ali.”

O que incomoda verdadeiramente é a aparência de indignação. Se todas as pessoas que assistem à busca de cadáveres, que observam acidentes, que esperam à porta dos tribunais estão verdadeiramente indignadas, chocadas ou o que quer que seja, comportem-se como tal. A indignação, o choque, a repulsa são sensações desagradáveis. Se estou indignado, chocado ou repelido por um determinado acontecimento, é-me difícil encará-lo e faço os possíveis por me afastar. Se estou abalado por uma criança inocente ter morrido de maneira bárbara, posso fazer muita coisa (as reacções nestas circunstâncias são muito diversas) mas não vou foçar no mato à procura do corpo.

Estas pessoas comportam-se desta forma não por sentimentos de indignação ou afins. Comportam-se assim porque sentem prazer. Os acidentes dão-lhes prazer. O sangue excita-os. O mórbido provoca-lhes um autêntico delírio sensual. São os prazeres que lhes sobram em vidinhas pobres, vazias e a que retiraram ou deixaram retirar todo o sentido.

Assuma-se então que as coisas assim são. É difícil mas faça-se um esforço. Vai-se para a porta do tribunal porque se está lá bem, discutindo o caso com pessoas que partilham interesses comuns e que gostam de agredir carros celulares. Olha-se para um automóvel despedaçado na berma da estrada dizendo “espero que não tenha sido grave” ao mesmo tempo que se procura avidamente uma mancha de sangue, uma orelha, um olho, uma perna ou uma mão que enriqueça a descrição que se vai fazer em casa. Acompanha-se um potencial suicida gritando-lhe que não é solução enquanto se espera que salte depressa porque a hora de almoço já está quase a acabar.

Uma criança foi morta pela mãe que em seguida escondeu o cadáver. Óptimo! Ainda bem! Porque não tinha nada que fazer hoje e assim sempre posso participar nas buscas.

9.9.04

Ai La Féria La Féria, sempre a mesma bactéria

Às vezes, perguntam-me “Olha lá, qual é o teu problema com o La Féria? O gajo fez-te algum mal ou isso é só mau feitio?” Confesso que raramente consigo responder de forma muito articulada e fico-me por um grunhido breve ou por uma frase simples como “Tu nem me fales nesse...” complementada com um bonito arranjo de palavrões à antiga portuguesa. Também posso começar a espumar da boca ou a abanar a cabeça para trás e para a frente de forma compulsiva enquanto vou cantarolando o tema principal da “Grande Noite” (Grande noite, grande noite, hoje vai ser a grande noite etc) que a RTP encomendou a Filipe La Féria numa noite em que a administração da televisão pública devia ter pegado no dinheiro que o dito programa custou e esbanjado tudo numa magnificente orgia para os funcionários mais dedicados com prostitutas de renome internacional e bebidas à discrição. Ficava o contribuinte mais bem servido.

Creio que é chegada a altura de fazer um esforço para explicar de forma o mais racional possível o que me move contra o trabalho do encenador mais popular do país e de forma tão militante que chega ao ponto de, por várias vezes, ter organizado sem sucesso operações de boicote às peças do senhor como, por exemplo, aquele plano memorável que envolvia raptar Anabela e substituí-la por um anão transsexual que acabaria por gorar-se quando o anão se recusou a beijar Carlos Quintas numa cena romântica de “Minha Linda Senhora.”

Um dos argumentos com que costumam tentar convencer-me a dar o dito por não dito é a velha história de reconhecer a Filipe La Féria o mérito de ter conseguido levar os portugueses ao teatro, coisa que não faziam normalmente, visto que se tornaram um povo alérgico a palcos com o passar dos anos. E daí? Isso dá qualidade ao seu trabalho? Não posso dizer que qualquer peça encenada por La Féria fica imediatamente contaminada com uma espécie de vírus revisteiro de mão na anca e trejeitos efeminados e imprópria para consumo humano só porque o senhor tem sempre lotação esgotada?

Se alguém decidisse organizar a matança diária em palco antecedida de tortura cruel de um funcionário da Direcção-Geral de Contribuições e Impostos e vendesse bilhetes para assistir ao evento, a sala estaria sempre cheia de gente entusiasmada a vibrar e aplaudir. Isso daria qualidade ao espectáculo? Talvez desse, agora que penso nisso. O exemplo não foi o melhor mas creio que ficou claro onde queria chegar.

Ao certo, de que é que não gosto em Filipe La Féria? Podia responder “de tudo” mas não o vou fazer porque faço questão de que as coisas fiquem bem claras. Vamos por partes.

Para começar pelo menos grave, não me agradou nada que o senhor tivesse comprado o cinema Olímpia. Está bem que era um espaço degradado e que a opção por só passar filmes pornográficos não fazia muito pela revitalização de uma das poucas salas de cinema que restavam na baixa lisboeta mas até nem me choca que penetrações vaginais, anais ou (inserir a vossa penetração preferida aqui) sejam elevadas à categoria de entretenimento de massas (massas que vão além dos intervenientes, claro está) mas penetrações mentais já me parecem dispensáveis.

Filipe La Féria foi o responsável pelo lançamento profissional de figuras como João Baião, Joaquim Monchique, Henrique Feist e Anabela. Fez de Alexandra uma actriz e ressuscitou destroços como Maria José Valério (sim, a velha doida que canta a marcha do Sporting e pinta o cabelo de verde). Já há mais alguém a pensar como eu?

Em relação à obra do artista (e aqui uso a palavra “artista” com o mesmo valor que na frase “Quem foi o filho de um grandessíssimo artista que me palmou a carteira?”), um mérito há que reconhecer-lhe. Em Portugal, nunca houve muitos dramaturgos. Os que tivemos foram quase sempre gente que fazia outra coisa qualquer e escrevia umas peças em part-time. Fale-se de Gil Vicente, Almeida Garrett ou Bernardo Santareno, e é mais ou menos unânime que estamos na presença de grandes autores. Se Filipe La Féria não existisse, não teríamos termo de comparação para ocupar o outro extremo da escala de qualidade, o extremo de “porcaria sem jeito nenhum.” Agradeçamos-lhe portanto o facto de podermos dizer “Epá, este Auto da Índia pode ser um marco na história do teatro europeu mas já me está a dar sono. Enfim, mas pelo menos não é o Passa Por Mim No Rossio.”

E quanto a méritos ficamos por aqui.

Os primeiros trabalhos como "grande encenador" e não teatreiro underground de café-concerto (Whatever Happened to Madalena Iglésias, Passa por Mim No Rossio, Maldita Cocaína) eram aglomerados de rábulas em rima pobre interpretadas por actores em bicos de pés, com trejeitos amaricados, mãozinha na anca e vozes de peixeira do Bolhão entrecortadas com números musicais com muita cor, cenários magnificentes, coreografias mexidas e referências à grande Fernanda Baptista que assim passou de actriz de revista (Baptista-Revista, uma rima que fica sempre bem) para uma espécie de deusa da falta de gosto teatral.

O público descobriu La Féria e o gosto pelo teatro. As salas começaram a esgotar. Os espectáculos mantinham-se em cena por longos períodos de tempo. Tudo graças a uma operação de marketing gigantesca que levava as pessoas a porem-se na fila para comprar bilhetes porque “parece que a peça é boa.” Ninguém sabia por que era a peça boa mas falava-se muito e havia muito cartaz e muito anúncio na televisão e se isso não é prova de qualidade eu não me chame Antero Sebastião de Oliveira França.

O fenómeno estava lançado e acabaria por chegar à televisão. À já referida “Grande Noite,” juntaram-se “Jasmim ou o Sonho do Cinema” e “Camaleão Virtual Rock,” uma “ópera-rock” que estreou na RTP (vários anos após estar concluída) no horário das quatro e meia da manhã, tendo conhecido grande sucesso entre padeiros e guardas-nocturnos. Tanto em “Camaleão” como em “Jasmim” se notou a predilecção de La Féria por crianças (calma que a frase ainda não acabou!) em papéis de destaque nos seus projectos. Estava provado de uma vez por todas que havia esperança para rapazinhos imberbes com maneirismos afectados, filhos de gente rica e que lá no colégio todos tratam por “Mariazinha” e que não estavam limitados a trabalhar como sócios-maioritários da empresa de advogados do papá. Também podiam ser artistas!

Depois, veio a era das grandes produções, já no teatro Politeama que entretanto adquiriu, gabando-se de o ter feito sem ajuda do estado (obrigado, governantes de todos nós por esse lampejo de bom senso). “Rosa Tatuada,” adaptação de um grande encenador (Tennessee Williams) interpretada por actores à altura (João Baião e Rita Ribeiro). “A Casa do Lago,” adaptação teatral do filme com Katharine Hepburn e Henry Fonda em que o talento dos velhinhos mais adoráveis e sobrevalorizados de Portugal (Ruy de Carvalho e Eunice Muñoz) era ofuscado pela verdadeira estrela do espectáculo, uma piscina que ocupava grande parte do palco. Uma peça sobre a vida de Maria Callas a que ninguém deu grande atenção mas que serviu para dar um gostinho ao encenador pelos tributos a grandes divas da música.

A atempada morte de Amália Rodrigues permitiu transformar a sua vida num musical, tendo o encenador revelado mais tarde que a própria Amália se tinha mostrado favorável ao projecto. Possivelmente, não foi informada de que o seu papel, sendo ela uma mulher que manteve um certo charme até à morte, seria interpretado por uma pata-choca oxigenada como a fadista Alexandra.

Até que chegámos à minha obra laferiana preferida. Aquela que mais vontade me dá de fazer uma espera ao Carlos Quintas à porta do teatro e colar-lhe um bilhete nas costas a dizer “Por favor, matem-me com requintes de malvadez. Dá-se recompensa generosa e bilhetes duplos para o Politeama.” Falo de “My Fair Lady” ou “Minha Linda Senhora,” o título português porque é um facto que 90% do público das peças de Filipe La Féria tem dificuldades que cheguem com a língua portuguesa para pensarem duas vezes antes de se aventurarem em idiomas estrangeiros. A crítica rendeu-se. Bravo. Sublime. Vejam como é possível encher uma sala de teatro em Portugal.

Disse-se que a produção portuguesa da peça era tão boa como a inglesa. No mínimo. Podia até ser melhor. O facto de ter sido o próprio encenador a dizer isto não escandalizou ninguém. A modéstia é uma coisa muito bonita mas quando se tem um talento sobre-humano, há que aceitá-lo com galhardia, pois então.

Para quem não conhece, permitam-me um momento enciclopédico breve. My Fair Lady começou por ser um musical da autoria de Frederic Loewe e Alan Jay Lerner estreado em 1956. A história baseava-se em “Pigmaleão” de George Bernard Shaw e narrava as peripécias do professor Henry Higgins e os seus esforços para transformar a pobre Eliza Doolittle numa dama da alta sociedade. Nos papéis principais, Rex Harrison e Julie Andrews. Na adaptação cinematográfica feita por George Cukor em 1964, Harrison manteve-se e Andrews foi substituída por Audrey Hepburn.

Mas foi preciso mudarmos de século e vir-se até Lisboa para que a velha história conhecesse a sua versão mais perfeita. Rex Harrison podia ser muito bom actor mas não conseguia manter um sorriso amarelo durante tanto tempo como Carlos Quintas (o seu recorde pessoal vai nos cinco dias, oito horas, quarenta e sete minutos e dois segundos). Julie Andrews pode ser boa actriz e ter boa voz. Audrey Hepburn ficava muito bem no écran, apesar de ter sido dobrada nos momentos musicais do filme. Mas alguma destas senhoras ganhou o festival RTP da canção? Anabela ganhou. E para provar que o talento não se mede aos palmos, encarregou-se com mestria de mostrar que pode ser tão má como actrizes de 1,85m (Brigitte Nielsen, põe-te a pau) e que a mesma vozinha aguda que forçou tantos portugueses a mudarem de canal de televisão ou estação de rádio sempre que começava a cantar (“Quando cai a noite na cidAAAAAAAAAAAAAAAAAAde” lembram-se?) e aquela cara de mosca morta faziam dela a Eliza perfeita.

E em todos estes espectáculos, esteve presente a marca La Féria, o motivo principal que leva alguns a odiarem-no, que lhe suscita uma admiração masturbatória pelo seu próprio génio e que faz com que muitos vão ver os seus espectáculos “porque não dá nada de jeito na televisão e, assim como assim, sempre se vai ao teatro e temos alguma coisa para contar no escritório amanhã, não é?”

Ontem Amália, Callas, Tennesse Williams e Madalena Iglésias. Amanhã um musical erótico sobre a vida do engenheiro Sousa Veloso intitulado “Sem mais assunto, dispo-me com amizade.” Ontem o Politeama e o Olímpia. Amanhã o Coliseu dos Recreios e o Estádio da Luz. Chegará um dia em que existirá pelo menos uma peça de Filipe La Féria em cena em todas as sedes de concelho.

Por incrível que pareça, nem lhe atribuo quaisquer culpas. O pobre homem faz o que tem a fazer. Assim sempre vai enganando as vozes que lhe dizem “Filipe... veste-te de Carmen Miranda e sai para a rua a cantar ‘O que é que a baiana tem.” A culpa, se é que podemos falar de culpa, é desse hábito recente mas já tão português de pegar no pouco que temos e elevá-lo à categoria de sublime mesmo que nem “bom” consiga ser. Porque se não formos nós a gostar das nossas coisinhas, quem gostará? Podíamos ter um pouco de sentido crítico e saber ver o que é bom e o que é mau mas não. Sejamos patriotas e louvemos a qualidade de tudo o que por cá se faz de forma tão entusiástica que, muitas vezes, acabamos por ignorar completamente o pouco que temos de realmente bom. Sendo assim, para quê a contenção? Filipe La Féria é o maior encenador português! O maior dramaturgo europeu dos últimos 200 anos! O maior génio teatral de todos os tempos! Veja-se isto como uma adaptação positiva daquela expressão que fala de tempestade num copo de água. Não passa de um furacão num balde de merda.

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