<$BlogRSDURL$>

23.11.04

A opinião faz o ladrão

Dizia uma personagem de um humorista muito conhecido, e que já não é de bom tom citar, que "as opiniões são como as vaginas. Cada qual tem a sua e quem quer dá-la, dá-la." Isto de cada qual ter a sua é discutível mas o assunto é outro. Há algum tempo atrás, um canal de televisão fez um programa em que pretendia medir a inteligência dos portugueses através das perguntas habituais em testes deste género, coisas como "Qual destes três animais tem menos a ver com os outros? A-Canguru; B-Elefante; C-Crocodilo; D-Parafuso." No entanto, escolheram a abordagem errada. Se alguém tentasse medir a inteligência dos portugueses pela quantidade de assuntos sobre os quais têm uma opinião formada, sem dúvida que seríamos imediatamente considerados os maiores cérebros da Europa e, possivelmente, do mundo.

É impressionante. Portugal é o paraíso dos inquéritos de rua. Noutros países, avaliam-se as pessoas a olho para se ter a certeza de que se vai falar com alguém que tenha alguma coisa a dizer a respeito do assunto em questão. Cá não é preciso. Independentemente de idade, sexo, profissão, nível social, habilitações académicas, todos os portugueses têm alguma coisa a dizer sobre todos os assuntos que possam passar pela parte do cérebro que, após milénios de evolução, ficou incumbida de idealizar inquéritos.

Pensemos num português-tipo e chamemos-lhe Inácio. Ora, o Inácio tem 36 anos, é casado, tem duas filhas, é torneiro mecânico, faz uma perninha quando pode nos bombeiros voluntários, vai à bola ao sábado à noite e passa as tardes de domingo numa esplanada a comer caranguejo, quando o tempo ajuda, ou em casa, em frente à televisão, a ver fórmula 1 e os resumos do campeonato eslovaco, quando o tempo não está de feição. Faça-se uma pergunta ao Inácio sobre a política fiscal do governo e este prontificar-se-á a responder qualquer coisa como “Eu acho que ‘tá mal um gajo ter de pagar ao Estado para trabalhar. Eu sei que é preciso por causa dos hospitais e das auto-estradas mas devia haver outra maneira. É só isso que tenho a dizer.”

Óptimo. Chegamos à conclusão de que o Inácio já passou algum tempo a reflectir sobre o assunto ou até a discuti-lo com os amigos entre tremoços e imperiais. Passemos ao assunto seguinte. O que achará o Inácio da fruta transgénica? “Epá, um gajo quando compra fruta é porque acha que aquilo lhe vai dar saúde. Se é para apanhar doenças, não compra. É só isso que tenho a dizer.” Também terá reflectido sobre isto? Então e sobre a situação no Médio Oriente? “Os gajos têm que se entender. É como nós e os espanhóis. Dantes também andávamos sempre à solha e agora damo-nos bem. É só isso que tenho a dizer.” A exploração do planeta Marte? “Acho que fazem bem para o caso de a Terra explodir. Assim já tínhamos sítio para ir morar. É só isso que tenho a dizer.” Podíamos continuar mas tornar-se-ia entediante. O Inácio terá algo a dizer sobre todos os assuntos de que nos consigamos lembrar, da física quântica ao cinema experimental búlgaro, da egiptologia ao hóquei em patins.

E é assim que funcionam todos, ou a maior parte, dos portugueses. O que explica este comportamento invulgar? É muito simples. Os portugueses não conseguem, por mais que tentem, admitir a sua ignorância sobre um assunto. Estão geneticamente impedidos de o fazer.

Pense-se bem no assunto. Então e os “não sabe/não responde”? Num inquérito há sempre uma percentagem de gente que “não sabe/não responde.” Será que isso deita por terra a minha argumentção? Não. E passo a explicar. Para já, é necessário separar os “não sabe” dos “não responde.” Os “não responde” escusam-se a partilhar a sua opinião com o mundo por casmurrice, porque têm pressa, porque não gostam de aparecer na televisão ou por outro motivo qualquer. Não é que não a tenham. Os “não sabe” é que talvez estejam mais perto de uma legítima assunção de ignorância. Talvez. Não estão.

Uma boa parte das perguntas que obtêm respostas “não sabe” são do tipo: “O que acha do sexo anal?” Não há resposta não porque não se saiba nada do assunto mas devido ao síndroma “o que é que a vizinhança/a minha família/o pessoal lá do trabalho vai pensar de mim?” Logo, opta-se por não responder. É uma questão de segurança. E repare-se que não é medo de fazer figura triste. O português-tipo diz que “a guerra fria fez bem em ter acabado derivado ao preço do petróleo” com a maior das convicções. Não é bem isto? Então que se lixe! A culpa não é dele. É da sociedade que o tirou da escola para ir trabalhar e o obriga a ver televisão até os miolos se começarem a liquefazer. O problema aqui é apenas pudor.

Uma outra portuguesa-tipo, a Maria do Carmo, sabe muito bem o que quer dizer “fellatio”, até porque é uma leitora assídua do consultório sentimental das revistas, mas recusa-se a admiti-lo por pudor e porque tem de encarar as vizinhas no supermercado no dia seguinte (todas elas sabem o que quer dizer “fellatio” mas todas se recusam a admiti-lo com excepção da Ivone que é uma porca). A vergonha e o medo da reacção alheia arrumam uma boa parte dos “não sabe.” Quanto ao resto, a explicação é ainda mais simples. Quando alguém faz um inquérito e obtém uma resposta “não sei,” aceita-a e passa ao próximo. Faz mal. Há pessoas que cultivam a falsa modéstia e precisam de alguma insistência. Ai não que não sabem. Dê-se um incentivo, um breve “vá lá” basta, e é ver a opinião a jorrar qual rio Nilo dos factos trocados.

E onde quero eu chegar com isto tudo? É que acredito sinceramente que a vida no país seria melhor se existissem menos opiniões, se programas como o forum da TSF tivessem de acabar por falta de clientela ou se os rodapés dos programas de televisão passassem vazios de SMS. Mas isto é só a minha opinião. Gostava de saber a vossa.

15.11.04

1,2,3... 4

Portugal, anos 80. Uma segunda-feira como tantas outras. Noite cerrada de Inverno. A família Silva reúne-se frente à televisão para a celebração de um ritual semanal. Uma bota roxa saltitante canta uma cançoneta e cede lugar ao sorriso de Carlos Cruz que, como sempre, os saúda com um cordial “senhores espectadores, muito boa noite, bem-vindos a mais uma edição do 1,2,3.”

A seguir, entram os concorrentes, sempre em casalinho, e começa a diversão. Primeiro, as perguntas (“um, dois, três, diga lá outra vez”), depois a prova de destreza física (já com um casal eliminado) e finalmente o momento mais desejado (“senhores espectadores, não saiam dos vossos lugares, voltaremos dentro de momentos para a terceira e última parte do nosso Um, Dois, Três desta noite”). Havia músicos convidados, números de bailado e momentos de humor com Carlos Cunha e Marina Mota, Carlos Miguel (o Fininho) ou Herman José. Tudo subordinado ao tema de cada programa.

Era quase como ver um jogo de futebol. Se o casalinho fosse simpático, torcia-se para escaparem aos prémios menos bons e irem para casa com o cobiçado “fantástico automóvel.” Se não fossem, era rir ao ver a cara que faziam quando eram informados de que, depois de tanto esforço, voltavam para casa com a Bota Botilde e com um saco de areia da praia. A sorte deles é que havia quase sempre um “E AINDA” que, à última hora, acrescentava ao prémio uma viagem à volta do mundo ou um baú cheio de libras de ouro oferecido pelo Cola-Cao.

Bons tempos... mesmo só com dois canais. Os tempos passam, fica a nostalgia.
Nostalgia que a RTP soube aproveitar com mais uma encarnação do “1,2,3.” Não é a primeira vez que se tenta recriar o sucesso original. Até António Sala, para quem não se lembrar da figura, é uma espécie de Carlos Cruz com bigode e do Benfica, já fez um jeitinho como anfitrião do mítico concurso. E até nem se saiu nada mal.
Quem se sai mal, e muito, é Teresa Guilherme, a nova apresentadora. Passar de Carlos Cruz a António Sala e deste a Teresa Guilherme, usando uma metáfora futeboleira, seria o mesmo que substituir Vitor Baía por Moreira na baliza da selecção nacional e substituir Moreira pela Madre Teresa de Calcutá. Morta e tudo.

É verdade que Carlos Cruz talvez não fosse uma boa opção nesta altura, mesmo que o programa fosse gravado em sua casa e com público composto exclusivamente por maiores de dezasseis anos, e que António Sala anda ocupado demais a explicar aos amigos benfiquistas por que fez parte da direcção de Vale e Azevedo, mas não havia mais ninguém? Até o jeito de “palerma mas bom rapaz” de Jorge Gabriel era preferível à histeria berrante e cabeluda de Teresa Guilherme. Sobretudo, porque não se trata de um programa da TVI ou da SIC mas sim de algo pago com dinheiros públicos.

Os mesmos dinheiros públicos usados para pagar, num passado recente, Luísa Castel-Branco, Júlia Pinheiro e João Baião. E que voltam a pagar este último já que é um dos “humoristas convidados” (leia-se: “VALHA-ME DEUS! ALGUÉM OS FAÇA PARAR, POR FAVOR!”) juntamente com o paquiderme da galhofa, Miguel Dias e, entre outros, com um rapazola com cara de rato que até tem jeito para imitar vozes (E daí? Tenho um tio que imita na perfeição a voz de Oliveira Salazar a ser sodomizado pelo Bonga e não me passa pela cabeça vê-lo na televisão).

O formato não anda muito longe do original, exceptuando o pormenor imperdoável de substituírem a amistosa Bota Botilde por uma abóbora que não inspira confiança a ninguém. Parece que tem pergaminhos do outro lado da fronteira mas por cá ninguém a conhece e é isso que interessa. Como diz o povo: de Espanha, nem bons ventos nem abóboras antropomórficas de Belzebu. Mas, se as cabeças pensantes da RTP, acreditaram alguma vez que repetir o formato equivalia a repetir o sucesso de outros tempos, podem tirar a Ferreirinha da chuva.

Até pode ter audiências (os portugueses já demonstraram em várias ocasiões que têm uma capacidade infinita para engolir qualquer merda que lhes vendam com a promoção adequada) e até pode continuar a ser o programa preferido dos casalinhos pré-casadoiros (é giro tentar adivinhar qual dos casamentos durará menos tempo e qual terá uma separação mais violenta pela forma como os futuros cônjuges discutem se hão-de rejeitar primeiro a varejeira de esferovite ou a bota da tropa) mas este “1,2,3” é das maiores aberrações televisivas que pelos écrans pátrios têm passado. E isto é dito num país cuja produção televisiva é uma verdadeira ilha do Dr. Moreau. Companhia não lhe faltará.

Nos últimos anos, tem-se feito notar na “nossa televisão” um fenómeno curioso. Parece haver uma relação directa entre o aumento do número de referências feitas ao serviço público e ao favor que a RTP nos faz pelo simples facto de existir e o decréscimo vertiginoso da qualidade da programação. Há já muito tempo que as coisas não estão bem mas havia sempre qualquer coisa que ia salvando a honra do convento. Se olharmos para produção nacional presente na programação actual da RTP 1, não há nada que consigamos descrever como “menos mau.”

Muda-se de instalações, fazem-se investimentos, modernizam-se as casas-de-banho para que não se voltem a entupir os canos com preservativos como aconteceu no edifício da 5 de Outubro, fazem-se reestruturações mas a porcaria é sempre a mesma com tendências para piorar a passos largos.

Não que isto queira dizer mais, em termos práticos, do que o que já todos sabem há muito (que o dinheiro dos contribuintes é mal aplicado em mais áreas do que na televisão). Enquanto se puder enfiar um alguidar pela cabeça abaixo e fazer de conta que as coisas não poderiam estar melhores e enquanto houver capacidade para fazer o público acreditar nisso, menos mal.

Para os que leram até aqui a pensar “Isto hoje não tem piada nenhuma! Onde é que está a graça?”, informo que a graça vem já a seguir. É a sinopse do “1,2,3” retirada da página da RTP.

‘O "1,2,3" é um formato de entretenimento familiar em que o suspense e a boa disposição são elementos chave, mas em que a dignidade da pessoa humana está salvaguardada. No essencial o "1,2,3" mantém a fórmula que o transformou num dos "game-shows" de referência da televisão. Os pares de concorrentes, que serão sempre casais, competem em várias eliminatórias até que um deles vai jogar o desafio final onde tem que escolher sucessivamente uma das várias ofertas. "1,2,3" está ainda muito presente na memória dos espectadores acima dos 40 anos, agora a prioridade passa pela captação de públicos mais jovens.’

Hilariante, não é?

2.11.04

Bom dia!

É fácil falar mal. Qualquer pessoa mais biliosa o faz. Falar bem já não é assim. Falar bem exige uma técnica específica que é difícil de adquirir. Sobretudo se não houver motivo nenhum para falar bem. Nesse caso, são necessários anos de experiência em campos tão diversos (ainda que interligados) como o da bajulação, da mentira piedosa ou da falta total de carácter (elemento que permite dizer qualquer coisa sem remorsos) ou actividade cerebral (que substitui o elemento anterior na perfeição). Os especialistas na área chegam a desenvolver problemas na língua devido às superfícies menos prazenteiras que são forçados a lamber durante as suas longas carreiras de “bendizentes” profissionais. E do sabor a caca nunca mais se livram.

Para variar um bocado, e para que não se diga que aqui só se fala mal, passo a expor as qualidades inegáveis dos programas televisivos matinais, os efeitos positivos que têm na sociedade e uma pequena sebenta com informação útil para todos os que queiram lançar-se no mundo fascinante da televisão e mais especificamente neste subgénero.
O que a seguir direi é fruto de uma reflexão intensa de vários segundos feita entre o abraço coreografado de Sónia Araújo a uma avó septuagenária de Avintes acompanhado por um dueto do padre Borga com Jorge Gabriel, o diálogo telefónico entre um pato de peluche e uma desempregada de longa duração, e os guinchos estridentes da mariazinha televisiva em que a TVI transformou Manuel Luís Goucha sem grande resistência do próprio.

Falemos das qualidades. Os três programas têm em comum o facto de terem público em estúdio e de terem audiências consideráveis. Sendo universalmente aceite que uma pessoa normal nunca conseguiria suportar mais do que alguns minutos de cada vez, e mesmo esses só com instintos masoquistas apurados, o que seria do país se, por exemplo, o público do “Você na TV” da TVI andasse em liberdade? Não me enganei. Era mesmo isto que queria dizer. Porventura pensavam que se tratava de pessoas que se dispunham a assistir ao programa e que, depois de terminado, iriam à sua vida? Desenganem-se. Ou nunca repararam na frequência com que as caras se repetem no público dos três programas? E o argumento de que “os mongolóides são todos iguais” é falso, cruel e não deverá ser usado.

O que se passa é que a SIC, a TVI e a RTP possuem calabouços onde mantêm enclausurados homens e mulheres (mais mulheres do que homens mas só por acaso) com sérios problemas mentais e que, depois de medicados, se tornam mansos como cordeiros e facilmente manipuláveis, ou seja, o público televisivo ideal.

Claro que não é pelo infortúnio de terem nascido marcados pelo estigma da anormalidade que merecem ser maltratados e o que a SIC faz ao público do “SIC 10 Horas,” enclausurando-o ao lado de Óscar Branco ainda que em jaulas separadas mereceria a atenção de algum organismo de defesa dos direitos dos anormais.
Agora pense-se no que aconteceria se esta gente vagueasse pelas ruas do país? Pelos nossos vales tão verdes, praias de areia fina e centros comerciais do mais puro betão? Centenas de donas-de-casa tresloucadas enchendo as ruas e exigindo electrodomésticos autografados pelo elenco dos “Morangos com Açúcar.” E o mesmo é válido para as multidões que se mantêm tranquilas e sem tentar morder o próximo no conforto dos seus lares enquanto vêem o seu programa preferido pela televisão.

É isto o verdadeiro serviço público, meus amigos. Que se prolonga para lá das manhãs com os programas da tarde (um subproduto dos programas matinais e com moldes semelhantes) como o “Portugal no Coração” ou o “Às Duas por Três.” Graças aos esforços de Jorge Gabriel, Sónia Araújo, Fátima Lopes e o seu ventríloquo e Manuel Luís Goucha e a sua loura deslavada (em colaboração com os esforços de José Carlos Malato, Merche Romero, Fernanda Freitas, José Figueiras, Cláudio Ramos e mais uma ou duas badalhocas cujo nome agora me falha) o país é um sítio mais aprazível para se viver.

No entanto, é sabido que o ser humano é uma criaturinha frágil e que mesmo alguém com um valente esquadrão de anticorpos não consegue suportar a exposição a doses tão elevadas de imbecilidade solidificada e com frequência diária a que os bravos profissionais se sujeitam. Se Manuel Luís Goucha morresse de repente, quem o substituiria depois dos cinco dias de luto nacional e mínimo de dois meses de participação obrigatória nos grupos municipais de choro cívico? Pensando nessa infeliz eventualidade, decidi partilhar convosco, o público em geral, alguns conhecimentos preciosos retirados directamente das páginas centrais do “Grande Livro da Televisão de Merda,” obra de referência essencial para o profissional da televisão que se preze e que não se vende nas livrarias. As poucas cópias que existem em Portugal foram manuscritas em páginas feitas da pele de Luís Pereira de Sousa curtida com o sol a que se expunha na apresentação de programas em directo da praia. Ao fazê-lo, espero que Portugal possa contar sempre com gente capaz de conceber, produzir e apresentar um programa matinal, mantendo assim os níveis de sanidade mental nos padrões aceitáveis em que hoje se encontram.

A primeira coisa a fazer é escolher o tipo de abordagem. Se, à primeira vista, os três programas matinais que hoje temos parecem ter apenas diferenças superficiais, nota-se após análise mais cuidada que cada um tem uma forma de abordagem do conceito de telemanhã.

Para facilitar a explicação da diferença nas abordagens a que me refiro, recorrerei a um exemplo. Imaginemos que uma desempregada quarentona, viúva e mãe de cinco filhos liga para os três programas. Ao ligar para a “Praça da Alegria,” a chamada seria recebida com música e folia, Jorge Gabriel agarrado à barriga de tanto forçar o riso, Sónia Araújo a tentar perceber de que ri o colega e sorrindo pelo sim pelo não, palhaços, gente a dançar, um verdadeiro Carnaval. Mal descobrissem a precaridade da situação da telespectadora, a alegria da praça não esmoreceria. Antes pelo contrário. Jorge Gabriel e Sónia Araújo juntar-se-iam para explicar cantando que o pior já passou e que, dali para a frente, as coisas só podem melhorar e que o importante é ter espírito positivo e nunca desistir de lutar. O padre Borga aproveitaria a deixa e acrescentaria uma daquelas mensagens absurdas em que os sacerdotes católicos são especialistas: “Lembre-se que o amor é a coisa mais importante da vida e que Cristo é amor e o amor sem Cristo vale tanto mais ou menos do que Cristo sem amor na paixão e na alegria.” De seguida, chamar-lhe-iam “minha querida” entre sorrisos e mandariam “beijinhos” entre acenos e mais sorrisos ainda. Mal a chamada fosse desligada, a banda residente irromperia num medley musical improvisado a partir do nome e da história de vida da espectadora. É a abordagem positiva.

Se a nossa viúva pouco alegre ligasse para o “SIC 10 Horas,” a coisa seria diferente. De início, o clima de folia seria idêntico ou ainda mais intenso com Fátima Lopes a esfalfar-se para conjugar o potencial irritante de Sónia Araújo e Jorge Gabriel numa única pessoa e com um pato amarelo enfiado no braço de um ventríloquo terrível a fazer as vezes de padre Borga (e com grande competência, diga-se). Mas, assim que os pormenores menos agradáveis da vida da espectadora fossem revelados, os sorrisos seriam de imediato substituídos por uma expressão de pesar e por suspiros entrecortados com o ocasional “isso é que é pior.” Pedir-lhe-iam pormenores. Quando é que lhe morreu o marido. De quê? Como vai de saúde? E os filhos dão-se bem com a escola? A seguir, esforçar-se-iam por lhe dar uma torradeira num concurso qualquer e mandá-la-iam à sua vida, lembrando que “infelizmente ainda há muitos casos assim no país” antes de entrar Óscar Branco e começar a imitar uma peixeira do Bolhão. É a abordagem realista.

Finalmente, se o destino da chamada fosse o “Você na TV,” substituto do “Olá Portugal” também com Manuel Luís Goucha mas sem a muleta loira, a coisa tornaria a mudar de figura. Goucha tem o condão de ser genuinamente emotivo, o que quer dizer que não precisa de fingir este ou aquele estado de espírito. Ficaria genuinamente feliz por estar a trocar impressões com a espectadora, mostrar-se-ia realmente interessado (como boa comadre que é) nos pormenores da sua desgraça e a solidariedade e os incentivos que se seguiriam seriam igualmente genuínos. O que esta abordagem tem de único viria a seguir. Seria feito um apelo a possíveis empregadores que pudessem contratar a viúva e a solteirões com posses que pudessem acabar-lhe com a viuvez carenciada em mais do que um aspecto. Pedir-se-iam informações a quem soubesse do paradeiro do fiel rafeiro da família desaparecido há duas semanas e oferecer-se-ia um computador para melhorar o desempenho escolar das crianças e uma cadeira de rodas porque é sabido que, quando as desgraças começam, ninguém as consegue parar. É a abordagem interventiva.

Escolhida a abordagem, restaria aplicar os elementos comuns: o carinho e a atenção para com os idosos e donas-de-casa (afinal de contas, o público-alvo), a promoção patrioteira e cega do país e de tudo o que temos de bom e de mau que passa a ser bom porque sim, a música ao vivo, os passatempos por telefone de forma a assegurar uma certa interactividade sempre desejável, os consultórios astrológicos, o público sempre animado (recorrendo-se a choques eléctricos para garantir a animação se necessário) e por aí fora.

E, é claro, os convidados. Qualquer uma destas abordagens implica convidados mas o
tipo de convidado a escolher varia de acordo com a abordagem. Na abordagem positiva da “Praça da Alegria” dá-se preferência a avózinhas com muitos netos, a deficientes e a adeptos do coleccionismo. Na abordagem realista do “SIC 10 Horas” existe uma preferência pelos dramas reais com convidados que tenham escapado a acidentes potencialmente letais, gente que tenha sobrevivido a doenças incuráveis, esposas espancadas, filhos que assumiram a homossexualidade e foram expulsos de casa pelos pais etc. Quanto à abordagem interventiva do “Você na TV,” os padrões não são tão rígidos e os convidados tanto podem ser vedetas de produções da TVI, artistas de áreas variadas, gente com apelidos idiotas, velhos que se apaixonaram no centro de dia, irmãos desavindos, filhos que encontram os pais pela primeira vez e por aí fora.

Com esta informação, qualquer leitor ficará equipado com as ferramentas essenciais para criar o seu próprio programa televisivo matinal. Resta-lhe combinar os vários ingredientes e temperar a gosto com o carisma pessoal de cada um. Fico à espera dos resultados. Votos sinceros de boa sorte para todos vós.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?