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13.7.04

A crise

Por mais que façamos de conta que não é nada connosco, ela está aí e não há volta a dar-lhe. Meus amigos, estamos envolvidos numa crise política daquelas que não havia por cá desde os saudosos e garridos tempos do pós-PREC, altura em que a política era mais genuína, os ideais eram mais puros, as gargantas gritavam mais alto e os políticos não tinham pudor nenhum em ir para o parlamento em mangas de camisa e tratar toda a gente por “camarada” a torto e a direito mesmo que o interlocutor fosse o professor José Hermano Saraiva (este trecho é inteiramente fictício pois, como é sabido, os ideais não eram assim tão puros e José Hermano Saraiva, antigo ministro dos governos do Estado Novo, enfiou-se debaixo da cama na manhã do 25 de Abril e só de lá saiu em Agosto de 1991 para apresentar um programa sobre a introdução da roupa interior na Península Ibérica durante o reinado de el-rei D. Fernando, o formoso ou “o cuecas” para os mais íntimos).

Analisemos as coisas de forma séria, mas sem exageros porque para seriedades temos aí o Nuno Rogeiro, o Marcelo Rebelo de Sousa e o José Carlos Malato. Como é que a crise começou? Ora bem, começou com o convite feito a Durão Barroso para assumir a presidência da Comissão Europeia, cargo para o qual começou por mostrar-se absolutamente indisponível e, logo em seguida, orgulhoso por ter sido escolhido e motivado para dar o melhor por Portugal e pelos portugueses também na Europa. Como chegámos até aqui não vale a pena estar agora a discutir. É indiferente saber se Durão foi convidado pelo reconhecimento dos seus méritos de estadista dotado, pela capacidade para introduzir canetas de feltro pelas narinas acima até só ficar o bico de fora (o que provoca sempre efeitos engraçados quando se assoa) ou como resposta às preces de milhões de portugueses que passaram os últimos dois anos a pedir a Deus para os livrar dele, esquecendo-se porém de especificar os termos em que isso deveria acontecer e prevendo quais as consequências futuras da concessão de tal graça.

Agora já está. Paciência. E como esta grande traineira em vésperas de ser abatida pelas limitações da Europa à frota pesqueira que é Portugal não pode passar sem um grande timoneiro que nos conduza ao porto de abrigo que é a reunião com os países do mítico pelotão da frente, restava ao presidente de todos nós tratar do assunto.

E poderia fazê-lo de duas formas. Ou convocava eleições antecipadas ou pedia ao partido mais votado nas últimas eleições para designar um novo primeiro-ministro. Havia uma terceira hipótese mas desde a Idade Média que a prática de fechar um grupo selecto de candidatos a governantes numa cave escura armados com objectos aguçados e nomear o único sobrevivente ao fim de três dias de combates violentos caiu em desuso e ainda bem porque ter um governo chefiado pelo Marco do Big Brother seria tão desastroso como ter um governo chefiado... sei lá... por Pedro Santana Lopes. Ai que parcial que eu fui agora. Que se lixe. Adiante.

Jorge Sampaio é um homem sensível. Se calhar, muitos dirão que é sensível demais. Outros não terão dúvidas em afirmar que é um choninhas que chora por tudo e por nada. Mas a sensibilidade (extrema ou não) não é o seu único dom. É poliglota. Fala inglês e francês e num nível superior ao de “empregado de marisqueira de Portimão” que é o nível a que chegam habitualmente os políticos portugueses mais dotados para isto das línguas. Foi um interveniente activo na luta estudantil antes de 1974. É um dos juristas mais conceituados do país. Com tudo isto, não seria demais pedir-se-lhe também que tivesse perspicácia política?

Esta tal perspicácia política de que falo é um dom raro. Não se trata da capacidade para interpretar os dados e chegar a conclusões. Vai mais longe. Trata-se de algo que permite olhar para uma determinada conjuntura, analisar os vários elementos presentes e, eis o busílis, ver para além deles, detectando o seu significado mais profundo e oculto. Muitos políticos passam a carreira toda sem esta capacidade e isso não faz deles necessariamente maus políticos. Jorge Sampaio, pelo contrário, tem-na e sabe como aplicá-la.

Na presente situação, tínhamos os seguintes elementos: o primeiro-ministro demitiu-se para assumir um cargo na União Europeia que lhe trará benefícios políticos e económicos; no último acto eleitoral, os partidos que sustentam o governo obtiveram votações que demonstram claramente que a maioria dos portugueses não está contente com o seu desempenho; o nome escolhido pelo partido maioritário no parlamento para a eventual constituição de novo governo é o de alguém que as sondagens revelam não ser do agrado da maioria dos portugueses (da minoria também não); outras sondagens revelam que os portugueses são maioritariamente a favor da convocação de eleições antecipadas; várias personalidades políticas conceituadas aconselham a convocação de eleições, incluindo algumas figuras ilustres do partido que venceu as últimas eleições legislativas; há manifestações populares de desagrado perante a possibilidade de ser formado novo governo sem recurso a uma consulta popular. E o Presidente da República, apela à calma e à serenidade (algo que sempre gostou muito de fazer), anuncia que vai pensar pois não é decisão que se tome de ânimo leve, desmente o primeiro-ministro demissionário quando este diz que lhe foi garantido que não iria haver eleições e mostra que é ele que decide e que a decisão ainda não foi tomada e... convida Santana Lopes para formar governo. Tudo a bem da estabilidade política. Desta estabilidade política em que hoje vivemos. Se isto não é ter visão, não sei o que é.

Quero deixar aqui uma coisa bem clara. Não tenho nada contra Santana Lopes para além do facto de me parecer um megalómano desejoso de acumular cargos uns atrás dos outros, de não mostrar competência para dirigir seja o que for em condições (uma câmara municipal, um clube de futebol, uma secretaria de Estado ou um governo), de desempenhar as funções para as quais é eleito de forma leviana e a pensar no que virá a seguir (Cultura, Sporting, Figueira, Lisboa, Portugal, Mundo e por aí fora), de andar sempre rodeado de dondocas, de ser tantas vezes referido nas páginas da actualidade política dos jornais como nas revistas cor-de-rosa ou de ser uma versão moderada, menos preocupante em aparência e heterossexual de Paulo Portas. Até estou disposto a dar-lhe uma oportunidade para ver do que é capaz à frente do governo de um país. Mas acho que não devia ser à frente do governo deste país. Há centenas de países no mundo. Por que é que temos de ser nós a ser governados por Santana Lopes? Não somos já suficientemente desgraçados com os incêndios, a pobreza, o atraso estrutural, as doenças, a iliteracia, as listas de espera, os Malucos do Riso e os acidentes de viação?

Mas parece que o homem até tem ideias. Durão Barroso nunca teve uma ideia real na vida. António Guterres teve uma mas era tão má que acabou por desistir dela. Tanto um como o outro governaram com base nas intenções de voto e nos discursos sobre este ou aquele assunto fulcral para a sociedade inserido no momento exacto para tentar inverter o rumo das sondagens e sem qualquer fim prático. Ao contrário, Santana Lopes parece ser profícuo em ideias. E isso mete-me medo.

Diz que quer descentralizar. Que com as novas tecnologias já não precisa de estar tudo concentrado no mesmo sítio. Que o ministério da Agricultura pode perfeitamente ser mudado para Santarém, que uma secretaria de Estado do Turismo pode ir perfeitamente para Faro. Qualquer idiota percebe que uma medida deste género seria desastrosa para a economia já bastante debilitada do quintalinho pacato em que vivemos. O pior é que em Portugal, o estatuto de “qualquer idiota” só é alcançado após longa e árdua formação académica.

Diz também que quer mais ministérios e menos secretarias de Estado. Pessoalmente, até concordo com esta. Por que não? Vejamos... temos a secretaria de Estado do Desporto. O desporto é uma área importante para o país. Do que nós precisamos é de um ministério do Desporto. Mas isso não chega. “Desporto” é muito vago. Constituam-se ministérios separados para o futebol, o andebol, o ciclismo, o basquetebol, o hóquei em patins e o atletismo. E como somos um país democrático em que os direitos das minorias são quase sempre reconhecidos e respeitados, não podemos limitar a medida aos desportos mais populares. É necessário que existam também um ministério do Cricket, um ministério do Corfebol, um ministério da Natação Sincronizada, um ministério da Columbofilia e um ministério dos 400 Metros Barreiras Para Atletas Que Não Conseguem Pronunciar Correctamente A Letra L. Pensando melhor, talvez não. Talvez a columbofilia passe bem só com uma secretaria de Estado. Afinal de contas, que raio de desporto é criar pombos e abrir-lhes a gaiola de vez em quando?

E por que não um ministério da Lusofonia? Por que não um ministério da Frontalidade? Um ministério da Intensificação? Um ministério da Audácia? Um ministério dos Pequenos-Almoços para promover aquela que, segundo os nutricionistas, é a refeição mais importante do dia e é sempre tão descurada entre nós.

Mas talvez não haja grandes motivos de preocupação. Olhando para o passado, o mais provável é que as ideias brilhantes de Santana Lopes para o futuro de Portugal tenham o mesmo fim de outras como o casino de Lisboa, a renovação do Parque Mayer, a animação nocturna da Avenida da Liberdade, a dinamização do parque de Monsanto ou as novas instalações da Feira Popular, ou seja, o esquecimento depois de um período de discussão pública acesa em que Santana tenta mostrar por que é que sabe o que é melhor para as pessoas e os seus detractores tentam mostrar-lhe que é um imbecil que não sabe o que diz.

Na pior das hipóteses, as suas ideias acabam em buracos gigantescos de lama ou pó (consoante a estação do ano) porque alguém as pára a tempo, antes que seja tarde demais e os efeitos catastróficos não possam ser invertidos.

Talvez.

Mas há uma coisa que me incomoda.

Incomoda-me pensar que nunca Santana Lopes teve tanto poder para levar as suas ideias até ao fim.

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