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23.1.05

Eles vêm aí

Tudo na vida tem um ciclo. Os animais nascem, crescem e morrem. As plantas germinam, desabrocham e secam. Os concorrentes de reality-shows participam, dão entrevistas e acabam a trabalhar numa sapataria. É a ordem natural das coisas. A que nem os governos escapam. São eleitos, têm os seus estados de graça e desgraça, os seus escândalos, os seus triunfos reais e fictícios, as suas demissões e remodelações, os desmentidos e por aí fora. Até às eleições que podem ser vencidas ou não, dependendo da vitória o prolongamento da sua vida.

Tem sido assim, como não podia deixar de ser, com os governos portugueses. O último, o de Santana Lopes, teve uma vida abreviada à custa de pontapés dados na incubadora e outros actos censuráveis de violência infantil. Vive agora os seus últimos dias com a nostalgia típica de fim de festa. “Lembras-te, Paulo, do que nós nos divertimos? Ah... Aquilo é que era vida. Bons tempos...” Pois. Eram bons mas acabaram-se. E, pelo que dizem os oráculos, não voltarão tão cedo (porque a previsão do futuro é uma parte integrante da democracia moderna e todos sabem quem vai ganhar com meses de antecedência).

Não que alguém lhes vá sentir a falta, tirando os alucinados do costume, aqueles que acham que as coisas realmente não estão bem mas antes estavam ainda pior e até se tem notado uma melhoria ainda que microscópica e o futuro só pode vir cheio de coisas boas e felizes desde que o governo siga em tons alaranjados com mais ou menos (ou nenhuns) laivos de azul e amarelo. E não, não estou a insinuar que vão convidar um jogador da selecção brasileira para ministro.

Até houve muito boa gente que festejou. Confesso que fui um deles. Quando soube, senti-me tão festivo que montei a árvore de Natal (passe a óbvia piadinha equestre). Felizmente, estávamos na altura do ano apropriada. Se estivéssemos em Março, acho que fazia o mesmo. Talvez seja melhor comprar uns fogos de artifício e guardá-los na despensa para evitar embaraços natalícios se a próxima queda de governo ocorrer fora da quadra.

Mas, pirotecnias à parte, não há grandes motivos para festejar se pensarmos seriamente no que nos espera. Ou já se esqueceram? Não foi assim há tanto tempo. As caras nem tiveram tempo de mudar. Demitiu-se este, fugiu o outro, reformou-se sicrano, foi beltrano implicado num escândalo de pedofilia e ilibado de maneira muito pouco convincente. Um Manel casou-se com uma boazona para deixarem de dizer que joga para o outro lado. O outro Manel decidiu-se a sair do jarro de formol. Um qualquer mostrou-se descontente com a liderança mas disponibilizou-se na mesma para o que fosse preciso sem que alguém lhe ligue peva, como é costume e até porque ser filho do paizinho já não ajuda. Mas, no essencial, são os mesmos.

E, sendo as pessoas as mesmas, as ideias e métodos também serão, no essencial, os mesmos. Ou melhor, quando digo “ideias,” o que quero dizer é “falta delas.” É melhor assim. Para evitar mal-entendidos. Não quero que, daqui a quatro anos me venham dizer “Olha lá, então tu disseste que os tipos tinham ideias e afinal não tinham! Andas a mangar com o pessoal ou quê?” Se estão à espera de ideias, de projectos para o futuro, medidas revolucionárias que tirarão Portugal do buraco, desenganem-se. A não ser que se contentem em ouvir falar de ideias, projectos e medidas revolucionárias e não façam questão de ver as ditas aplicadas e com resultados práticos. Porque, se há coisa em que os nossos futuros governantes (ai Fevereiro, que ainda vens tão longe) são bons é no paleio. Aí ninguém os bate.

Vejam o exemplo do engenheiro. Mesmo não tendo grande jeito para contas de cabeça (ou para outra coisa qualquer que se afaste muito da engenharia civil), ele falava, falava, emocionava, falava mais um bocadinho, emocionava-se, apelava, empolgava, enternecia, ajeitava a franja, falava, sorria, piscava o olho, ajeitava a franja outra vez e arranjava maneira de acabar todas as intervenções públicas com uma explosão de aplausos, gritos de apoio, bandeiras a acenar, papelinhos coloridos a cair do céu, fogos de artifício e música do Vangelis. Tudo isto, claro, com uma ajudinha dos especialistas em marketing brasileiros contratados pelo partido.
Porque, afinal de contas, falamos de socialistas modernos. E, no socialismo moderno, as ideias são dispensáveis. Quem precisa de ideias quando se pode ter uma valente chuva de papelinhos com as cores da bandeira e um espectáculo de raios laser? É colorido e sabe-se como o povo gosta de coisas coloridas e brilhantes.

Não. Ideias não terá o governo adivinhado de José Sócrates. Mas terá outras coisas, de certeza. Terá paixões apregoadas por dá cá aquela palha e que se sucederão umas às outras para dar uma ideia de fluidez governativa. Terá manifestações de júbilo e pesar. Sentimentos de orgulho por um trabalho bem feito ou a triste mas necessária aceitação de que as coisas não têm corrido bem mas podem correr melhor com o esforço de todos, de acordo com o andar da carruagem. Terá apelos. Terá esperança e solidariedade. Vontade de progresso. E uma consciência sempre presente de que eles, os que governam, não são superiores aos que são governados. Fazem parte deles. São seus iguais, num esforço fraternal para ajudar quem precisa e levantar quem está caído. Terá isto tudo. Terá tanta coisa que muita gente sentirá um aperto no estômago quando perceber (outra vez) que afinal não tinha nada.

Mas não estou a dizer que o próximo governo será igual ao governo e meio que nos tem governado nos últimos anos. Que eu sou um gajo com discernimento e há uma ou duas pessoas no mundo que sabem isso e para quem as minhas opiniões são importantes. E só a uma delas pago para pensar assim.

É óbvio que há diferenças. E, para melhor as expor, não resisto a recorrer a uma pequena metáfora. Imaginemos que temos dois rapazolas travessos que personifiquem as duas correntes ideológicas: a que nos tem governado e a que irá governar. A um dos rapazolas, ao socialista, chamaremos Zé. Ao outro, ao social-democrata, chamaremos outro nome escolhido ao acaso. Pedro, por exemplo. O Pedro e o Zé passeiam pelo campo, cada um por si, e descobrem uma moita que arde (estamos em Agosto). Trata-se claramente de um princípio de incêndio que eles, e só eles, poderão evitar. O Pedro entra em pânico. Gosta de se armar em valente e tem fama de chico-esperto mas, agora que enfrenta uma situação realmente complicada, não sabe bem o que fazer. Decide-se a arrancar à pressa a moita ardente pelo pé e, com muito jeito, lançá-la para o matagal que estava ali ao lado onde a moita decerto se apagará e, em não apagando, nunca poderá fazer grandes estragos numa reles reserva natural. Dias depois, com o incêndio finalmente extinto e milhares de hectares de floresta preciosa destruídos, o Pedro volta a assumir a pose e explica que a culpa até nem é sua. Aquilo só aconteceu porque a mata não tinha sido limpa e, porque realmente é uma tragédia, é urgente apurar responsabilidades e garantir que não voltará a acontecer.

Quanto ao Zé, deparando-se com a mesma moita em chamas e sendo mais calmo do que o Pedro, fica ali a olhar para a labareda pensativo e de mão no queixo a equacionar as possibilidades. Vai chamar uns amigos para verem a coisa e fazerem um ponto de situação, pede conselhos, olha para o incêndio (por esta altura, já é um incêndio) e chega à conclusão de que o melhor é não fazer nada até porque o que havia para arder já ardeu e o fogo acabará por se extinguir por falta de combustível mais tarde ou mais cedo. Depois, no rescaldo, anda de porta em porta, confortando as vítimas que sofreram perdas materiais e humanas, faz cara triste, talvez até verta uma ou outra lágrima e diz que está solidário, que podem contar com ele se alguma vez precisarem e apelando a um grande esforço nacional para ajudar aquela pobre gente e prevenir a repetição da catástrofe.

Calma. É só uma metáfora com o objectivo de tentar explicar as diferenças subtis que
existem realmente, contrariando todos os que digam que “é a mesma merda.” Na minha modesta opinião, não é a mesma merda. São merdas diferentes. O cheiro pode ser igual ou muito parecido mas a diferença está lá. E não quis com isto insinuar que haja por aí políticos com intenções de pegar fogo ao país. Isso já acontece de qualquer forma todos os Verões. Não haverá com certeza motivo para pânicos. Podemos não estar bem entregues mas, pelo menos, sempre somos uma democracia saudável e funcional. Olhem o que era ter esta gente a mandar em nós sem termos sido nós a escolhê-los. Era uma valente chatice.

5.1.05

O mar enrola na areia

Há mar e mar, há ir e voltar. Infelizmente para todos nós, o slogan que Alexandre O’Neill criou para uma campanha de segurança nas praias é só um desejo, uma recomendação e não um facto. Porque o mar é uma coisa tremenda que não se deixa limitar por slogans publicitários nem moldar pela vontade humana. Faz o que bem lhe apetece e nem precisa de consciência para saber muito bem para onde tem de ir e o que tem de fazer.

E quando um terramoto força a água a galgar a terra, destruindo o que lhe aparece à frente e arrastando consigo as vidas dos que têm o azar de estarem no sítio errado na altura errada, pouco haverá a fazer para além de, como é costume dizer-se, enterrar os mortos e tratar dos vivos. Nestes casos, a culpa que também se diz não dever morrer solteira, morre viúva porque não há quem culpar. Se a terra treme, se o mar reduz a costa a escombros, se um vulcão destrói uma cidade inteira, não há armas de destruição massiva, ditadores, redes terroristas, governos ou quadrilhas de malfeitores que possam ser responsabilizados. Nem sequer se pode culpar a violência na televisão e no cinema ou os jogos de vídeo. Ou o Marilyn Manson. E se não se pode culpar um tipo que pinta a cara de branco, usa lentes de contacto de cores bizarras e se veste de maneira esquisita, é porque a coisa deve ser mesmo grave.

Por tudo isto se compreende que o mundo esteja chocado pela destruição provocada no Oriente por forças que não podemos controlar. E pelos mortos. Ou compreender-se-ia se o choque fosse provocado só por isto. Acredito que não é.

Há diversos factores a ter em consideração. Em primeiro lugar, não sei até que ponto este clima de consternação geral existiria de forma tão prolongada se os locais afectados não fossem destinos turísticos tão populares e se, entre as vítimas, não houvesse tantos ocidentais. Até que ponto não seria apenas mais uma calamidade num sítio longínquo com vítimas de pele escura e direito a referência nos noticiários durante dois ou três dias acompanhada por comentários nas ruas de “Viste aquilo no Sri Lanka? Que chatice... Onde é que é o Sri Lanka?” Aviões chocam contra dois arranha-céus em Nova Iorque que caem, matando 3000 pessoas. Uma tragédia como o mundo nunca viu. Choque. Pânico. Reflexão. Para que não volte a acontecer. No Sudão, morrem 70.000 pessoas por não terem que comer. “O Sudão é em África, não é? Que chatice...”

E, no entanto, entre os desejos para 2005 das pessoas entrevistadas pelos canais de televisão portugueses em festas de fim de ano por todo o país, o mais ouvido, para além dos habituais desejos de saúde e felicidade, foi o desejo de que não houvesse mais calamidades naturais. Como, em anos anteriores, foi o desejo de que acabasse o terrorismo. Ou que acabasse a guerra no Iraque. Ou, com sorte, um desejo muito geral de paz para o mundo todo. Nem um único voto de melhoras ligeiras das condições de vida dos milhões de desgraçados que morrem à fome no mundo todos os anos desde a revolução industrial, compreendendo-se que seja difícil pensar em gente faminta entre fatias de bolo-rei, taças de champanhe e fogos de artifício.

Não o fazemos de forma consciente. Nós, os tais ocidentais, não somos má gente e somos tão sensíveis à miséria e à desgraça como qualquer outra civilização. Ajudamos de bom grado quando vemos que alguém precisa de ajuda e sem esperar nada em troca. O pior é quando não vemos. Aí não podemos fazer nada. E, se as coisas acontecem longe de nós, dependemos da comunicação social para ficar a saber que algures no mundo aconteceu (outra vez) qualquer coisa muito má. É uma das missões mais nobres que os jornalistas têm. Mostrar ao mundo os problemas dos outros para que alguém, algures, possa fazer alguma coisa para os resolver. E a televisão assume aqui o papel de maior importância pela capacidade incomparável de captar imagens que valham pelas tais mil palavras que, em muitas destas situações, são difíceis ou mesmo impossíveis de dizer.

Mas não é isso que a televisão faz. Nesta e noutras ocasiões, o que a televisão tem feito, com poucas e honrosas excepções, é voltar a transformar a desgraça em entretenimento, fazendo da morte, da fome, da doença, do sofrimento humano real o sal e a pimenta de uma espécie de reality-show global em que todos vivemos e colocando-nos num estado de hipnose generalizada em que se torna muito difícil resistir a ver as imagens mais recentes dos últimos cadáveres flutuantes a serem filmados, do funeral da princesa, dos aviões que embatem nas torres. Mesmo que consigamos dizer não (como à droga), continua a ser difícil evitar informações de que não precisamos mas que nos perseguem e espreitam um pouco por todo o lado.

E mais difícil se torna escapar ao clima de medo generalizado. Um medo que também não é bem real porque não é medo de algo em concreto. É um medo permanente e difuso provocado pela consciência (para a qual somos empurrados) de que não estamos seguros mas sem perceber ao certo o que nos ameaça, se a eventualidade de um atentado terrorista que pode acontecer a qualquer altura e em qualquer sítio, se o facto de vivermos sobre placas tectónicas que não param de se arrastar para cima umas das outras ou o mar que temos aqui mesmo ao lado e que está desejoso de nos engolir com as suas águas poluídas por resíduos tóxicos e povoadas por tubarões cheios de dentes, alforrecas cheias de tentáculos ou lulas ferozes do tamanho de petroleiros.

“Então decide-te, ó pá! Queres cobertura televisiva ou não?” pergunta o leitor confuso número 47. E eu respondo que sim. Que quero cobertura televisiva e que quero saber o que se passa. Mas não preciso de ser informado de cada vez que o número de mortos aumenta como se a minha vida dependesse disso e como se estivessem a contar participantes num desfile de Pais Natais. Pior ainda. Não preciso de os ver (os Pais Natais e os mortos). Se me dizem que há muitos mortos por enterrar em Sumatra, não preciso de ver para crer. Acredito na palavra de quem mo diz. Dispenso as imagens e dispenso a descrição pormenorizada do cheiro a putrefacção que se sente um pouco por toda a costa da Tailândia cortesia do senhor enviado especial a um sítio qualquer que nem sequer sabia existir dois dias antes. E acredito que imagens de gente a ser arrastada pelo mar não impressionam mais se as virmos várias vezes seguidas.

O que nos salva é saber que esta euforia catastrófila que enche os écrans com repórteres imbuídos de uma alegria infantil comparável à de uma criança com um brinquedo novo (os brinquedos aqui são as milhentas palavras novas que aprendem de propósito para a ocasião e que não se cansam de repetir como “tsunami,” “escalada” ou “taliban” ao mesmo tempo que tentam passar a imagem de que sempre as souberam) durará apenas até à próxima catástrofe/escândalo/conquista desportiva. Ou, se não houver nenhuma catástrofe/escândalo/conquista desportiva no espaço de um mês, a novidade esgota-se e, aos poucos, vamos deixando de ouvir falar no assunto até chegarmos a um ponto em que, mesmo que houvesse novas informações, estas não são veiculadas porque o público está saturado e já ninguém pode ouvir falar do assunto sob pena de mudar de canal.

Até lá, siga a festa. A contagem das vítimas aumentou em mais 500 mortos e há um novo videoamador feito por um turista sueco que captou imagens impressionantes do primeiro impacto do tsunami quando estava pendurado num coqueiro a fazer um documentário sobre formigas dos trópicos. A não perder.

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