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26.6.05

Pride

Hoje, para variar, não vou falar de políticos, nem de pessoas que aparecem na televisão e não vou estar para aqui a formular teorias absurdas sobre assuntos do dia e tentar impingi-los a leitores incautos. Não. Hoje, vou falar de mim. Para ser mais específico, vou falar das minhas preferências sexuais. Quase consigo imaginar amigos e conhecidos a lerem estas linhas e a deixar cair o queixo no chão de espanto. Receio até que muitos cortem relações comigo depois de saberem desta minha “diferença” que deveria ser pequena e insignificante mas que, por preconceitos que nos são impostos pela sociedade desde que nascemos, acaba por significar muito. De qualquer forma, é tarde demais para voltar atrás e estou farto de carregar este segredo às costas. Mais vale assumir de uma vez por todas e seja o que Deus quiser. Pelo menos, “saio do armário”, como se costuma dizer, e posso finalmente respirar de alívio depois destes anos todos.

Cá vai disto.

Respirar fundo.

Caros leitores, amigos, colegas e afins… eu…

É mais difícil do que esperava. Mas tem mesmo de ser.

Eu… gosto de mulheres com mamas grandes.

Pronto. Já está. Se calhar, deveria ter dito as coisas de maneira mais delicada. Poderia ter dito que sou megalomamófilo, termo que confere um ar mais científico à coisa, mas achei que não valia a pena estar com rodeios e era melhor ser directo e chamar as coisas pelos nomes.

Muita gente achará que, por se tratar de uma preferência sexual, uma particularidade íntima minha (“íntima mona” talvez fosse mais apropriado à situação, passe a piadinha infantil), não havia necessidade de a tornar pública mas não é assim. Trata-se de uma preferência sexual que traz consigo um estigma. Os megalomamófilos são discriminados pela sociedade e, para combater essa discriminação, compreende-se que seja necessária a coragem de assumir a diferença, fazendo ver que somos pessoas normais, apesar de tudo.

E é dramático. Ter de esconder de toda a gente que, em termos mamários, preferimos as medidas grandes. Ter de suportar teorias que explicam que não há motivo para tanto alarido porque os seios (é assim que lhes chamam os entendidos) são só aglomerados de tecido adiposo, rodeando glândulas produtoras de leite que permitem alimentar os recém-nascidos, como acontece com as fêmeas dos outros mamíferos e ainda que as formas divirjam. Que, fora isso, são só atributos sexuais secundários (Secundários!!! Custa tanto ouvir isto), que não há motivo nenhum para olhar para as grandes e para as pequenas de forma diferente, que os tamanhos maiores trazem problemas de coluna e de gravidade, que isto e que aquilo. A tudo dizemos que sim com o medo de sermos descobertos. Ouvimos as piadas que contam (Sabem aquela dos dois megalomamófilos que vão comprar melões?) e somos os que rimos mais alto para ninguém dar pela vontade que temos de chorar. E, quando somos descobertos, vêm os comentários de cada vez que voltamos as costas e os insultos descarados na rua “Lá vai o mamalhista!), as amizades destruídas, os parentescos renegados, as crises e até os despedimentos.

Por tudo isto, é necessário engolir os medos e assumir, mantendo o queixo bem levantado. Dizer a toda a gente que sim, que gostamos de mamas grandes e que, não só não temos qualquer problema em assumi-lo, como temos orgulho nisso. É esta a atitude que também eu preciso de tomar a partir de hoje. Só assim conseguiremos todos, a comunidade megalomamófila, conquistar a aceitação e a igualdade de direitos. Só assim, conseguiremos unir esforços para combater a praga que afecta milhões de megalomamófilos em todo o mundo: os implantes de silicone. Talvez um dia consigamos até o que já é realidade noutros países. O direito de adoptar crianças sem receios de que a paternidade megalomamófila desperte tendências semelhantes na criança e a force a achar que uma mama do tamanho de uma maçã reineta é bonita mas se tiver o tamanho de uma meloa é perfeita.

Mas não me fico por aqui. Levo a minha militância ainda mais longe. Estou a pensar fundar um movimento que defenda os direitos dos megalomamófilos portugueses. E, se correr bem, posso alargar a coisa a outros grupos igualmente discriminados de gente com preferências mamárias alternativas como os maximegalomamófilos ou os micromamófilos, por exemplo.

E faremos desfiles e arraiais. Gritaremos palavras de ordem. Em vez de nos comportarmos como pessoas normais que somos, não assustando gente de ideias menos arejadas, vamos esforçar-nos por chocar. Faremos figuras tristes. Usaremos chapéus com grandes mamas de esponja dos lados e soutiens de copa D enrolados à volta do pescoço à laia de cachecol. Dançaremos freneticamente ao som de Fafá de Belém.
Porque tudo isto faz parte do orgulho megalomamófilo. E quem achar que é folclórico, desnecessário ou mesmo disparatado é um sacana preconceituoso.

4.5.05

Manifesto Godá

Jovem. Levanta-te e segue-me. Eu posso indicar-te o caminho. Tenho-te visto a andar sem rumo pela rua, indeciso quanto ao ritmo da passada, com os olhos no chão e a cabeça nas alturas. Não precisas de penar mais. Eu sei para onde queres ir.

Vivemos numa época de crise de valores. Normalmente, quem diz isto está a referir-se ao facto de andarmos todos a interromper gravidezes a torto e a direito sem nos preocuparmos em ir à missa de vez em quando, num perpétuo arraial de fornicação desregrada. Não é a isso que me refiro.

Nas gerações anteriores, passava-se directamente da infância para a idade adulta através do sacramento do matrimónio. Até à idade dos 18, 19, tudo era mais ou menos inocente. Depois disso, o objectivo comum passava a ser encontrar uma cara metade, casar e constituir família, possibilitando o início de um novo ciclo.

Agora, as coisas mudaram. Quem vê a sua adolescência chegar ao fim, hoje em dia, tem um punhado de opções. Ou continua a fazer o mesmo, ou seja, envereda por uma “vida em comum”, uma “relação” mais ou menos oficializada e mais ou menos bem-sucedida (o divórcio também é uma experiência válida e uma separação de facto pode ser tão proveitosa como uma união de facto); ou tem a sorte de encontrar uma ocupação profissional de tal forma enriquecedora que faça esquecer tudo o resto (actor, cantor, futebolista ou secretário-geral da ONU).

Fora isto, é preciso haver qualquer coisa que complemente o trabalho ou o estudo. Há os desportos radicais, o tuning, a criação de pitbulls e rottweillers, o crime, a aquariofilia, a filatelia, a informática, a pedofilia, a observação de aves, a pesca, a caça, o futebol, o ténis, a fórmula 1, o sexo, a masturbação, a masturbação com pittbulls e rottweillers, a masturbação dentro de um aquário com selos de correio e até, para quem gosta de emoções fortes, o folclore.

Mas há gente que, por ter uma educação mais esmerada ou apenas porque as circunstâncias da vida assim o determinaram, acha que está acima disto. Precisam de algo que lhes titile a sofisticação. Que os faça sentir que pertencem a um grupo. E não a um grupo qualquer mas a um grupo de gente que, como eles, tenha gosto apurado, tenha opiniões, saiba apreciar as artes e não ignore que sair de casa sem um saco a tiracolo e um livro de Boris Vian no bolso é como estar nu.

Precisam de ser godás.

E o que vem a ser um godá?

É muito simples.

Comecemos pela pronúncia. Lê-se “gódá” e não “gudá” ou “gôdá” ou qualquer outra variante. Vem de Godard, realizador francês que, não sendo ele um godá propriamente dito, é um dos autores que, para qualquer godá que se preze, fica sempre bem citar e dizer que se conhece o seu trabalho e se gosta muito.

O termo é de minha autoria mas o conceito já existia. A única coisa que faltava era alguém perceber que não é apenas uma particularidade comportamental mas toda uma filosofia de vida. Dizia-se que fulano era intelectual. Ora, ser-se intelectual é bastante desprezível mas não se enquadra na grandiosidade emparvescente da essência do godá. Pacheco Pereira, por exemplo, é um intelectual. Mas nunca ninguém o verá de cachecol cheio de borboto e calças de bombazine a tentar decorar a ficha técnica de um filme eslovaco dos anos 30 a partir de uma brochura da Cinemateca.

Depois há variações de intelectual. “Pseudo-intelectual” ou o “intelectualóide” que já se aproximam mais da natureza do godá. Mas são dois termos arruinados pelo uso e abuso de anos. Hoje em dia, “pseudo-Intelectual” e “intelectualóide” é o que os parvos chamam a toda a gente que é ligeiramente menos parva do que eles à falta de qualificativo mais adequado.

No fundo, há cinco elementos fundamentais que definem a essência do godá. A saber:

1-Aparência

O godá põe as coisas do espírito acima das coisas materiais. Mas as coisas do espírito não dão nas vistas e, por mais culto que se seja, não é por isso que alguém vai reparar em nós no Lux apinhado. O segredo está em vestir de forma aparentemente despreocupada mas garantindo que um conjunto singelo de elementos está sempre presente. O calçado deve ser desportivo e discreto. Ténis de marca mas que não chamem a atenção são o ideal. Calças de ganga só se não houver mais nada no armário. E, mesmo assim, convém que não sejam azuis. No tronco é onde a liberdade é maior. Dá-se preferência a cores sisudas e é melhor não haver nada escrito (o godá lê, o godá não é lido). Se houver alguma coisa escrita que seja arrojada e emblemática (o nome de um festival de cinema underground ou uma frase em inglês carregada de pós-modernidade vanguardista como “My feet smell” ou “I suck cock;” se o arrojo for muito, pode ser em alemão). Para complementar, um saco a tiracolo (simultaneamente prático e requintado), um cachecol (se fizer frio) e um par de óculos de massa (se houver falta de vista ou, mesmo que não haja, se houver dedicação que chegue para isso). Os homens devem usar a barba por fazer e o cabelo despenteado. As mulheres podem andar como quiserem que vão sempre sentir que estão a criar tendências (para além das tendências homossexuais que muitas criam nos godás machos hetero).

2-Gosto

O gosto é o elemento definidor por excelência que faz dos godás tudo aquilo que são e consegue sobrepor-se aos outros quatro pois é por aquilo de que gosta ou finge gostar que um godá se posiciona na hierarquia godárica. A definição do que é ou não gostável em termos de arte não depende de critérios estéticos subjectivos (como sucede com o comum dos mortais) mas sim da seguinte equação matemática: x + y + z / m = r (em que x corresponde ao número de pessoas que não conhecem a manifestação artística em questão-quanto mais elevado o valor, melhor; y é a quantidade de pessoas que poderão ficar impressionadas com a sua referência; z é a importância de quem recomendou; m é a biografia do autor; e r o nível de apreciação). E há uma ressalva que deve ser feita no que diz respeito a cinema. O godá convicto não vê filmes americanos. Até pode já ter feito uma lista dos seus filmes preferidos (os godás gostam de fazer listas e de as comparar com as dos outros godás para ver quem tem a maior) e percebido que uma boa parte deles é americana mas não interessa. Todo o cinema americano deve ser metido no mesmo saco (com honrosas excepções: David Lynch e Woody Allen antes de se terem vendido ao capital, por exemplo). Não há cá "cinema independente" nem "blockbusters." Bons filmes ou maus filmes. Tudo é igualmente mau e americano (são sinónimos). Se algum não-godá mais afoito pedir explicações, diz-se-lhe que o cinema americano é mau porque é comercial. A seguir, foge-se a correr para não ter de ouvir os argumentos dele de que este argumento é uma imbecilidade. Além disso, os americanos não merecem mais depois daquilo que fizeram no Iraque e no Afeganistão. Os porcos.

3-Discurso

O discurso do godá genuíno é um verdadeiro trabalho de patchwork verbal. Nos primeiros anos de godázice, poderá haver uma tendência motivada pela falta de experiência para dizer coisas que são resquício de alguma actividade cerebral própria muito ligeira. Com o tempo, o godá aprende que, com tanta gente a dizer coisas importantes, significativas, mordazes e bem pensadas ao longo da história da humanidade, é uma grande presunção pensar que alguma coisa que possam pensar por si próprios poderá conseguir ter mais interesse. Resta optar entre citações devidamente identificadas e citações obscuras retiradas de jornais e revistas ou ouvidas de passagem. A opção fica ao critério de cada godá.

4-Expressão

O godá não se limita a ser um apreciador de manifestações artísticas alheias. É ele próprio um artista multifacetado, dando especial importância às artes maiores do ponto de vista da produção artística godá: a poesia e a fotografia. A predilecção por estas duas formas de expressão deve-se a motivos essencialmente pragmáticos. Fazer cinema, pintar, cantar ou mesmo escrever prosa exige um conjunto de requisitos a priori e um certo nível de esforço que o godá não pode despender porque tem coisas melhores em que ocupar o seu tempo precioso. Para a fotografia e a poesia, basta ter acesso a uma máquina fotográfica e a um qualquer suporte de escrita digital ou analógico. Os resultados serão posteriormente expostos para apreciação de outros godás em blogs (godá que se preze tem de ter um blog, se se prezar mesmo muito, tem um livejournal) e podem mesmo chegar até ao grande público graças ao “empurrãozinho” de um godá amigo/conhecido com os contactos certos.

5-Convívio

O godá é auto-suficiente. Mas não deixa de ser um animal social e, como tal, precisa de conviver com outros godás para se sentir realizado. Os ajuntamentos godás dão-se em locais que podem ir de estabelecimentos de diversão nocturna, galerias de arte, livrarias, salas de cinema, concertos, cafés ou qualquer recanto mal iluminado e cheio de fumo com um ar prazenteiro para albergar tertúlias. Nesses encontros, cada godá debita os novos conhecimentos que adquiriu nos dias anteriores (esforçando-se ao máximo para dar a entender que se trata de algo que já sabe há muito), recomendam-se e trocam-se livros, cds e dvds, fumam-se cigarros, bebem-se cafés e cada godá tenta parecer o mais natural possível, ao mesmo tempo que vai pensando que a godázice dos outros não passa de pose e que só a sua é legítima.

E é esta a essência do godá. Muito mais haveria para dizer mas, por motivos de tempo, vejo-me forçado a ficar por aqui. Há um ciclo muito bom na Cinemateca subordinado ao tema “François Truffaut e cuecas de renda-uma relação intempestiva” e, se chegar atrasado já não apanho brochuras.

9.2.05

Branco

Vou votar em branco. E surpreende-me a maneira como muita gente com quem partilho a minha intenção de voto reage. Acho que reagiriam melhor se dissesse que ia votar no PNR (para quem não sabe, o PNR é um partido fascista acobardado pela lei eleitoral que acha que todos os problemas do país se resolveriam se repatriássemos os imigrantes clandestinos, fechássemos as fronteiras e saíssemos da União Europeia).

Um dos argumentos que mais vezes usam é o de que eu e outros como eu, por votarmos em branco, seremos os responsáveis se, no fim de determinada legislatura, Portugal não for um país perfeito ou, pelo menos, estiver mais próximo de padrões escandinavos de perfeição. Ou seja, e acompanhem-me que isto é difícil de explicar e mais ainda de perceber, eu, ao enfiar o meu boletim de voto na urna tal e qual como o recebi (mas dobrado), sou o responsável pelos erros governativos por excesso e por defeito cometidos pelo partido em que eles, os que põem uma cruz no boletim, votaram e que ganhou ou, não tendo ganho, terá conseguido eleger uma representação parlamentar.

Isto é o mesmo que dizer que quem não vota em ninguém é responsável porque esbanja o seu voto de forma quase onanista, podendo ser esse voto a menos o necessário para permitir eleger o deputado que faria toda a diferença, por exemplo, para dar a maioria absoluta a um partido ou para a retirar a outro.

Para quem assim pensa, votar em branco é um acto irresponsável, correspondendo a uma negação do dever cívico de participação no processo democrático. Também pode ser visto como laxismo ou inconsciência. Ou ainda como preguiça de reflectir nas propostas dos vários partidos e escolher o que nos pareça ter melhores ideias para assegurar um governo eficaz e produtivo. E, com certeza, que o país e o mundo estarão cheios de gente que se enquadra nesta descrição. Estes, os laxistas, os irresponsáveis, os preguiçosos e inconscientes são os que não votam, os que ficam em casa e fazem de conta que não é nada com eles.

Votar em branco é diferente. E compreende-se facilmente que tem de ser diferente porque ninguém se dá ao trabalho de procurar o cartão de eleitor, ir à mesa de voto, esperar na fila (bons tempos em que era preciso esperar na fila para votar), ouvir o nosso nome lido em voz alta e tudo para dobrar um papel e introduzi-lo numa ranhura.

O voto em branco é um acto reflectido e consciente. Quem vota em branco, fá-lo por achar que nenhum dos partidos concorrentes a uma eleição apresenta propostas suficientemente válidas e que valham algo tão precioso como a nossa cruzinha no boletim. E é mais consciente do que votar no partido A para não ganhar o partido B mesmo que se ache que os candidatos do partido A são uns incapazes iguais aos do partido B mas, pelo menos, assim sempre vai havendo alguma variedade.

É esta a verdadeira irresponsabilidade. Ver a democracia como uma espécie de jogo em que se torce pela equipa (partido) do nosso coração e se faz o possível para ganhar ou, caso não seja possível a vitória, para perder por poucos, aplicando o que poderia ser descrito como “voto táctico.”

E, se alguém não se identifica com nenhum dos partidos, não poderá ser culpado por isso. Da mesma forma que ninguém poderá ser culpado por ser um militante convicto do CDS (e daí…). Também há quem não perceba como é possível isto acontecer com a variedade imensa (SARCASMO) de ideais representados pelos vários partidos portugueses. É preciso ser-se mesmo muito esquisito para não conseguir escolher um partido no qual votar. Ou então é porque se tem a mania de ser diferente, o que, como é sabido, é dos piores defeitos que alguém pode ter nesta era de carneirismo encarreirado em que vivemos.

Mas vou votar em branco na mesma. Tentem impedir-me.

23.1.05

Eles vêm aí

Tudo na vida tem um ciclo. Os animais nascem, crescem e morrem. As plantas germinam, desabrocham e secam. Os concorrentes de reality-shows participam, dão entrevistas e acabam a trabalhar numa sapataria. É a ordem natural das coisas. A que nem os governos escapam. São eleitos, têm os seus estados de graça e desgraça, os seus escândalos, os seus triunfos reais e fictícios, as suas demissões e remodelações, os desmentidos e por aí fora. Até às eleições que podem ser vencidas ou não, dependendo da vitória o prolongamento da sua vida.

Tem sido assim, como não podia deixar de ser, com os governos portugueses. O último, o de Santana Lopes, teve uma vida abreviada à custa de pontapés dados na incubadora e outros actos censuráveis de violência infantil. Vive agora os seus últimos dias com a nostalgia típica de fim de festa. “Lembras-te, Paulo, do que nós nos divertimos? Ah... Aquilo é que era vida. Bons tempos...” Pois. Eram bons mas acabaram-se. E, pelo que dizem os oráculos, não voltarão tão cedo (porque a previsão do futuro é uma parte integrante da democracia moderna e todos sabem quem vai ganhar com meses de antecedência).

Não que alguém lhes vá sentir a falta, tirando os alucinados do costume, aqueles que acham que as coisas realmente não estão bem mas antes estavam ainda pior e até se tem notado uma melhoria ainda que microscópica e o futuro só pode vir cheio de coisas boas e felizes desde que o governo siga em tons alaranjados com mais ou menos (ou nenhuns) laivos de azul e amarelo. E não, não estou a insinuar que vão convidar um jogador da selecção brasileira para ministro.

Até houve muito boa gente que festejou. Confesso que fui um deles. Quando soube, senti-me tão festivo que montei a árvore de Natal (passe a óbvia piadinha equestre). Felizmente, estávamos na altura do ano apropriada. Se estivéssemos em Março, acho que fazia o mesmo. Talvez seja melhor comprar uns fogos de artifício e guardá-los na despensa para evitar embaraços natalícios se a próxima queda de governo ocorrer fora da quadra.

Mas, pirotecnias à parte, não há grandes motivos para festejar se pensarmos seriamente no que nos espera. Ou já se esqueceram? Não foi assim há tanto tempo. As caras nem tiveram tempo de mudar. Demitiu-se este, fugiu o outro, reformou-se sicrano, foi beltrano implicado num escândalo de pedofilia e ilibado de maneira muito pouco convincente. Um Manel casou-se com uma boazona para deixarem de dizer que joga para o outro lado. O outro Manel decidiu-se a sair do jarro de formol. Um qualquer mostrou-se descontente com a liderança mas disponibilizou-se na mesma para o que fosse preciso sem que alguém lhe ligue peva, como é costume e até porque ser filho do paizinho já não ajuda. Mas, no essencial, são os mesmos.

E, sendo as pessoas as mesmas, as ideias e métodos também serão, no essencial, os mesmos. Ou melhor, quando digo “ideias,” o que quero dizer é “falta delas.” É melhor assim. Para evitar mal-entendidos. Não quero que, daqui a quatro anos me venham dizer “Olha lá, então tu disseste que os tipos tinham ideias e afinal não tinham! Andas a mangar com o pessoal ou quê?” Se estão à espera de ideias, de projectos para o futuro, medidas revolucionárias que tirarão Portugal do buraco, desenganem-se. A não ser que se contentem em ouvir falar de ideias, projectos e medidas revolucionárias e não façam questão de ver as ditas aplicadas e com resultados práticos. Porque, se há coisa em que os nossos futuros governantes (ai Fevereiro, que ainda vens tão longe) são bons é no paleio. Aí ninguém os bate.

Vejam o exemplo do engenheiro. Mesmo não tendo grande jeito para contas de cabeça (ou para outra coisa qualquer que se afaste muito da engenharia civil), ele falava, falava, emocionava, falava mais um bocadinho, emocionava-se, apelava, empolgava, enternecia, ajeitava a franja, falava, sorria, piscava o olho, ajeitava a franja outra vez e arranjava maneira de acabar todas as intervenções públicas com uma explosão de aplausos, gritos de apoio, bandeiras a acenar, papelinhos coloridos a cair do céu, fogos de artifício e música do Vangelis. Tudo isto, claro, com uma ajudinha dos especialistas em marketing brasileiros contratados pelo partido.
Porque, afinal de contas, falamos de socialistas modernos. E, no socialismo moderno, as ideias são dispensáveis. Quem precisa de ideias quando se pode ter uma valente chuva de papelinhos com as cores da bandeira e um espectáculo de raios laser? É colorido e sabe-se como o povo gosta de coisas coloridas e brilhantes.

Não. Ideias não terá o governo adivinhado de José Sócrates. Mas terá outras coisas, de certeza. Terá paixões apregoadas por dá cá aquela palha e que se sucederão umas às outras para dar uma ideia de fluidez governativa. Terá manifestações de júbilo e pesar. Sentimentos de orgulho por um trabalho bem feito ou a triste mas necessária aceitação de que as coisas não têm corrido bem mas podem correr melhor com o esforço de todos, de acordo com o andar da carruagem. Terá apelos. Terá esperança e solidariedade. Vontade de progresso. E uma consciência sempre presente de que eles, os que governam, não são superiores aos que são governados. Fazem parte deles. São seus iguais, num esforço fraternal para ajudar quem precisa e levantar quem está caído. Terá isto tudo. Terá tanta coisa que muita gente sentirá um aperto no estômago quando perceber (outra vez) que afinal não tinha nada.

Mas não estou a dizer que o próximo governo será igual ao governo e meio que nos tem governado nos últimos anos. Que eu sou um gajo com discernimento e há uma ou duas pessoas no mundo que sabem isso e para quem as minhas opiniões são importantes. E só a uma delas pago para pensar assim.

É óbvio que há diferenças. E, para melhor as expor, não resisto a recorrer a uma pequena metáfora. Imaginemos que temos dois rapazolas travessos que personifiquem as duas correntes ideológicas: a que nos tem governado e a que irá governar. A um dos rapazolas, ao socialista, chamaremos Zé. Ao outro, ao social-democrata, chamaremos outro nome escolhido ao acaso. Pedro, por exemplo. O Pedro e o Zé passeiam pelo campo, cada um por si, e descobrem uma moita que arde (estamos em Agosto). Trata-se claramente de um princípio de incêndio que eles, e só eles, poderão evitar. O Pedro entra em pânico. Gosta de se armar em valente e tem fama de chico-esperto mas, agora que enfrenta uma situação realmente complicada, não sabe bem o que fazer. Decide-se a arrancar à pressa a moita ardente pelo pé e, com muito jeito, lançá-la para o matagal que estava ali ao lado onde a moita decerto se apagará e, em não apagando, nunca poderá fazer grandes estragos numa reles reserva natural. Dias depois, com o incêndio finalmente extinto e milhares de hectares de floresta preciosa destruídos, o Pedro volta a assumir a pose e explica que a culpa até nem é sua. Aquilo só aconteceu porque a mata não tinha sido limpa e, porque realmente é uma tragédia, é urgente apurar responsabilidades e garantir que não voltará a acontecer.

Quanto ao Zé, deparando-se com a mesma moita em chamas e sendo mais calmo do que o Pedro, fica ali a olhar para a labareda pensativo e de mão no queixo a equacionar as possibilidades. Vai chamar uns amigos para verem a coisa e fazerem um ponto de situação, pede conselhos, olha para o incêndio (por esta altura, já é um incêndio) e chega à conclusão de que o melhor é não fazer nada até porque o que havia para arder já ardeu e o fogo acabará por se extinguir por falta de combustível mais tarde ou mais cedo. Depois, no rescaldo, anda de porta em porta, confortando as vítimas que sofreram perdas materiais e humanas, faz cara triste, talvez até verta uma ou outra lágrima e diz que está solidário, que podem contar com ele se alguma vez precisarem e apelando a um grande esforço nacional para ajudar aquela pobre gente e prevenir a repetição da catástrofe.

Calma. É só uma metáfora com o objectivo de tentar explicar as diferenças subtis que
existem realmente, contrariando todos os que digam que “é a mesma merda.” Na minha modesta opinião, não é a mesma merda. São merdas diferentes. O cheiro pode ser igual ou muito parecido mas a diferença está lá. E não quis com isto insinuar que haja por aí políticos com intenções de pegar fogo ao país. Isso já acontece de qualquer forma todos os Verões. Não haverá com certeza motivo para pânicos. Podemos não estar bem entregues mas, pelo menos, sempre somos uma democracia saudável e funcional. Olhem o que era ter esta gente a mandar em nós sem termos sido nós a escolhê-los. Era uma valente chatice.

5.1.05

O mar enrola na areia

Há mar e mar, há ir e voltar. Infelizmente para todos nós, o slogan que Alexandre O’Neill criou para uma campanha de segurança nas praias é só um desejo, uma recomendação e não um facto. Porque o mar é uma coisa tremenda que não se deixa limitar por slogans publicitários nem moldar pela vontade humana. Faz o que bem lhe apetece e nem precisa de consciência para saber muito bem para onde tem de ir e o que tem de fazer.

E quando um terramoto força a água a galgar a terra, destruindo o que lhe aparece à frente e arrastando consigo as vidas dos que têm o azar de estarem no sítio errado na altura errada, pouco haverá a fazer para além de, como é costume dizer-se, enterrar os mortos e tratar dos vivos. Nestes casos, a culpa que também se diz não dever morrer solteira, morre viúva porque não há quem culpar. Se a terra treme, se o mar reduz a costa a escombros, se um vulcão destrói uma cidade inteira, não há armas de destruição massiva, ditadores, redes terroristas, governos ou quadrilhas de malfeitores que possam ser responsabilizados. Nem sequer se pode culpar a violência na televisão e no cinema ou os jogos de vídeo. Ou o Marilyn Manson. E se não se pode culpar um tipo que pinta a cara de branco, usa lentes de contacto de cores bizarras e se veste de maneira esquisita, é porque a coisa deve ser mesmo grave.

Por tudo isto se compreende que o mundo esteja chocado pela destruição provocada no Oriente por forças que não podemos controlar. E pelos mortos. Ou compreender-se-ia se o choque fosse provocado só por isto. Acredito que não é.

Há diversos factores a ter em consideração. Em primeiro lugar, não sei até que ponto este clima de consternação geral existiria de forma tão prolongada se os locais afectados não fossem destinos turísticos tão populares e se, entre as vítimas, não houvesse tantos ocidentais. Até que ponto não seria apenas mais uma calamidade num sítio longínquo com vítimas de pele escura e direito a referência nos noticiários durante dois ou três dias acompanhada por comentários nas ruas de “Viste aquilo no Sri Lanka? Que chatice... Onde é que é o Sri Lanka?” Aviões chocam contra dois arranha-céus em Nova Iorque que caem, matando 3000 pessoas. Uma tragédia como o mundo nunca viu. Choque. Pânico. Reflexão. Para que não volte a acontecer. No Sudão, morrem 70.000 pessoas por não terem que comer. “O Sudão é em África, não é? Que chatice...”

E, no entanto, entre os desejos para 2005 das pessoas entrevistadas pelos canais de televisão portugueses em festas de fim de ano por todo o país, o mais ouvido, para além dos habituais desejos de saúde e felicidade, foi o desejo de que não houvesse mais calamidades naturais. Como, em anos anteriores, foi o desejo de que acabasse o terrorismo. Ou que acabasse a guerra no Iraque. Ou, com sorte, um desejo muito geral de paz para o mundo todo. Nem um único voto de melhoras ligeiras das condições de vida dos milhões de desgraçados que morrem à fome no mundo todos os anos desde a revolução industrial, compreendendo-se que seja difícil pensar em gente faminta entre fatias de bolo-rei, taças de champanhe e fogos de artifício.

Não o fazemos de forma consciente. Nós, os tais ocidentais, não somos má gente e somos tão sensíveis à miséria e à desgraça como qualquer outra civilização. Ajudamos de bom grado quando vemos que alguém precisa de ajuda e sem esperar nada em troca. O pior é quando não vemos. Aí não podemos fazer nada. E, se as coisas acontecem longe de nós, dependemos da comunicação social para ficar a saber que algures no mundo aconteceu (outra vez) qualquer coisa muito má. É uma das missões mais nobres que os jornalistas têm. Mostrar ao mundo os problemas dos outros para que alguém, algures, possa fazer alguma coisa para os resolver. E a televisão assume aqui o papel de maior importância pela capacidade incomparável de captar imagens que valham pelas tais mil palavras que, em muitas destas situações, são difíceis ou mesmo impossíveis de dizer.

Mas não é isso que a televisão faz. Nesta e noutras ocasiões, o que a televisão tem feito, com poucas e honrosas excepções, é voltar a transformar a desgraça em entretenimento, fazendo da morte, da fome, da doença, do sofrimento humano real o sal e a pimenta de uma espécie de reality-show global em que todos vivemos e colocando-nos num estado de hipnose generalizada em que se torna muito difícil resistir a ver as imagens mais recentes dos últimos cadáveres flutuantes a serem filmados, do funeral da princesa, dos aviões que embatem nas torres. Mesmo que consigamos dizer não (como à droga), continua a ser difícil evitar informações de que não precisamos mas que nos perseguem e espreitam um pouco por todo o lado.

E mais difícil se torna escapar ao clima de medo generalizado. Um medo que também não é bem real porque não é medo de algo em concreto. É um medo permanente e difuso provocado pela consciência (para a qual somos empurrados) de que não estamos seguros mas sem perceber ao certo o que nos ameaça, se a eventualidade de um atentado terrorista que pode acontecer a qualquer altura e em qualquer sítio, se o facto de vivermos sobre placas tectónicas que não param de se arrastar para cima umas das outras ou o mar que temos aqui mesmo ao lado e que está desejoso de nos engolir com as suas águas poluídas por resíduos tóxicos e povoadas por tubarões cheios de dentes, alforrecas cheias de tentáculos ou lulas ferozes do tamanho de petroleiros.

“Então decide-te, ó pá! Queres cobertura televisiva ou não?” pergunta o leitor confuso número 47. E eu respondo que sim. Que quero cobertura televisiva e que quero saber o que se passa. Mas não preciso de ser informado de cada vez que o número de mortos aumenta como se a minha vida dependesse disso e como se estivessem a contar participantes num desfile de Pais Natais. Pior ainda. Não preciso de os ver (os Pais Natais e os mortos). Se me dizem que há muitos mortos por enterrar em Sumatra, não preciso de ver para crer. Acredito na palavra de quem mo diz. Dispenso as imagens e dispenso a descrição pormenorizada do cheiro a putrefacção que se sente um pouco por toda a costa da Tailândia cortesia do senhor enviado especial a um sítio qualquer que nem sequer sabia existir dois dias antes. E acredito que imagens de gente a ser arrastada pelo mar não impressionam mais se as virmos várias vezes seguidas.

O que nos salva é saber que esta euforia catastrófila que enche os écrans com repórteres imbuídos de uma alegria infantil comparável à de uma criança com um brinquedo novo (os brinquedos aqui são as milhentas palavras novas que aprendem de propósito para a ocasião e que não se cansam de repetir como “tsunami,” “escalada” ou “taliban” ao mesmo tempo que tentam passar a imagem de que sempre as souberam) durará apenas até à próxima catástrofe/escândalo/conquista desportiva. Ou, se não houver nenhuma catástrofe/escândalo/conquista desportiva no espaço de um mês, a novidade esgota-se e, aos poucos, vamos deixando de ouvir falar no assunto até chegarmos a um ponto em que, mesmo que houvesse novas informações, estas não são veiculadas porque o público está saturado e já ninguém pode ouvir falar do assunto sob pena de mudar de canal.

Até lá, siga a festa. A contagem das vítimas aumentou em mais 500 mortos e há um novo videoamador feito por um turista sueco que captou imagens impressionantes do primeiro impacto do tsunami quando estava pendurado num coqueiro a fazer um documentário sobre formigas dos trópicos. A não perder.

19.12.04

Tradições do nosso Portugal

Há uma coisa de que nos poderemos sempre orgulhar. Já cá andamos há muito tempo, vivemos num dos países mais veteranos da Europa e, como não poderia deixar de ser, fomos dotados pela história de um leque vastíssimo de tradições e costumes que fazem dos portugueses o que são e contribuem para tornar únicos os habitantes deste cantinho à beira-mar prantado.

Com tamanha riqueza de costumes, é difícil escolher um como tema e podia escrever sobre, por exemplo, a arte de cuspir para o chão, o talento inato para improvisar casas-de-banho em qualquer lado ou daquele jeito tão nosso, tão português para nos enfiarmos pelo mar dentro, enfrentando o desconhecido com o objectivo nobre de dar novos mundos ao mundo ou de contribuir para o enriquecimento da taxa de afogamentos nas praias durante o Verão (dependendo da época histórica em análise).

Mas não o vou fazer.

Porque não me apetece.

E não vale a pena insistirem. Não me apetece pronto!

Em vez disso, vou falar de outra tradição legitimamente lusitana.

E começo por me dirigir aos mais novos.

Jovem, acabaste agora o curso de gestão de empresas que os teus pais queriam que tirasses com a condição de te pagarem depois um curso de teatro, que sempre foi a tua vocação. Preparas-te para enfrentar o mercado de trabalho. Sabes que será difícil. O país é pequeno. As mentalidades também. Vais ter de penar para conseguir uma posição à altura das tuas capacidades. Vais ter de morder o fel da rejeição laboral. Vais ter de te submeter a entrevistas de emprego humilhantes e a testes psicotécnicos absurdos. Vai ser mau. Vai doer. Mas tens de passar por isso.

Ou não.

Lembras-te do pai daquele colega de escola que toda a gente gozava porque tinha orelhas de abano e com quem tu nunca gozaste (pelo menos, não à frente dele)? Sim, o tal que era director daquela empresa. Por que não ligar ao teu bom amigo Dumbo e cobrar aqueles anos de amizade devota que lhe dedicaste com grande perigo para a tua reputação académica? Isso mesmo. Lembra-lhe o que sofria, os momentos passados a chorar pelos cantos da escola. Lembra-lhe como tu eras o único que o avisava que tinha passado o dia todo com um papel a dizer “O ORELHAS É UM CAMELO” colado nas costas. Claro está que só o fazias no fim do dia mas o que conta é que te preocupavas com o bem-estar dele.
E ele bem podia preocupar-se com o teu agora.

Sugere-lhe que dê uma palavrinha ao papá (o Dumbo Sénior) e lhe diga que conhece a pessoa ideal para aquela posição lá na empresa que vagou recentemente por causa daquele escândalo com as secretárias ucranianas e a lata de papaias em calda na arrecadação dos toners de fotocopiadora. Não há nenhuma posição vaga na empresa? Azar! Tu também tiveste de arranjar espaço no horário escolar, entre aulas, namoricos atrás do pavilhão e jogos de futebol de cinco, para segurar a auto-estima do Orelhas e impedi-la de rastejar pelo chão.

O que foi? Não conheces ninguém com familiares importantes e o bombo da festa da escola eras tu? E a pessoa mais importante que consegues arranjar na tua própria família é o tio Ernesto que foi sargento dos pára-quedistas e agora vive da reforma devida por ter um estilhaço de moçambicano alojado no abdómen?
Nada temas. É para pensar em alternativas que eu aqui estou.

Quem não tem cão, caça com gato (momento de sabedoria popular). E quem nem sequer tem gato, terá de caçar com o sucedâneo mais à mão. Sei lá... um coelho com garras aguçadas ou um peixinho dourado com vocação para perdigueiro.

Se não tiveste a sorte de nascer com “contactos” ou se as circunstâncias da vida não te fizeram adquiri-los, não está nada perdido. A amizade não é só uma coisa muito bonita. Também é útil. E toda a gente gosta de ter amigos (que nunca são demais). Por isso, ninguém se importará de ter mais um amigo, mesmo que esse amigo seja uma pessoa dotada de espírito visionário e consciente das vantagens que poderão advir da amizade certa na altura certa.

Imaginemos que anseias por uma carreira de sucesso como serralheiro. Tiraste um curso num centro de formação muito bom (desististe a meio mas foi como se o tivesses acabado), sabes perfeitamente que não és o serralheiro mais dotado do mundo mas, que raio, também tens direito à vida! Vai daí, começas a frequentar aquele certo e determinado bar onde sabes que a nata da serralharia passa as noites para descomprimir das serras... e brocas... e... o que quer que os serralheiros usem como
instrumentos de trabalho.

Se souberes jogar os teus trunfos, se souberes aplicar o charme que sabes que tens, se te conseguires integrar nas conversas certas, bajular as pessoas apropriadas, conseguir que te apresentem a certos e determinados indivíduos bem colocados, tens a carreira lançada.

É que nem precisas de te esforçar. Com amigos no sítio certo (nem é preciso serem muitos, basta um, desde que tenha uma rede de contactos vasta), tens biscates garantidos para o resto da vida. E nem precisas de saber distinguir entre uma fechadura de pistões e um cadeado de torniquete. Aliás, não precisas de saber nada de nada. A amizade é bonita a esse ponto. Só tens de te assegurar que a amizade que te levou onde estás nunca será rompida e que, se tiver mesmo de ser, que o seja por ti e para ser substituída por uma amizade mais proveitosa. A nobreza de sentimentos é uma das maiores qualidades que o ser humano pode ter.

O que foi agora? Não consegues fazer amigos? És um anti-social? Já estás a dificultar muito as coisas. Mas podes parar de choramingar como uma menina (a não ser que sejas mesmo uma menina, nesse caso podes continuar mas também não exageres).

Se não tens familiares (mesmo que não sejam teus) ou amigos em posição de te dar uma ajudinha, ainda tens uma hipótese. Para alguns, poderá ser um assunto delicado mas vou tentar explicar o melhor que sei e posso e espero não ofender ninguém.

Conheces alguém, por exemplo, aquela vizinha muito estúpida mas bem apessoada, que ocupe uma posição de relevo sem ter algo que se aproxime, ainda que minimamente, a competência? Nunca pensaste que era estranho alguém com estas condições ter uma posição daquelas? E nunca te recriminaste por ter pensado, numa vez ou noutra, que a explicação mais provável para um fenómeno tão estranho talvez fosse que a tua vizinha não tivesse grande pudor em trocar “jeitinhos” profissionais por “jeitinhos” de índole mais brejeira? Pois. Acredito que sim. Quem não teria feito o mesmo em circunstâncias iguais?

Mas chega de recriminações. Até porque o mais provável é que não haja motivo para remorsos. Se uma determinada pessoa parece não ter quaisquer competências para determinado cargo e, mesmo assim, o ocupa, sem ter um familiar ou amigo que possa por isso ser responsável, o mais provável é que tenha mesmo dado o corpo ao manifesto.
E tu também o podes fazer. Sem vergonhas. Sem remorsos. Afinal, roubar é pecado mas ninguém nos pode censurar por darmos o que é nosso, pois não? Mesmo que seja para obter esta ou aquela compensação.

Afinal, não é assim tão pouco habitual. E é uma prática bastante comum mesmo nas esferas mais elevadas. Por exemplo, na política ou nas artes onde este tipo de transacção é tão frequente que chega quase a ser procedimento oficial.
Basta ligar a televisão para ter exemplos frequentes. Nunca reparaste numa ou outra jovem apresentadora pouco arejada de ideias mas com um palminho de cara e mais palmo e meio de corpo que, de vez em quando, parece ter alguma dificuldade em sentar-se para fazer uma entrevista ao Roberto Leal que nos visita para apresentar o novo disco e dizer que nos tem no coração e que não leva a mal o que gozamos com a cara dele porque somos todos irmãos? Lá está. Ou se não é a dificuldade em sentar-se, terá decerto queimaduras provocadas pela fricção da alcatifa nos joelhos ou um fac-símile perfeito do tampo da secretária do patrão nas costas.

Mas não se pense que este tipo de prática apenas beneficia as carreiras profissionais de membros do “belo sexo.” Há alguns anos atrás, talvez fosse assim até porque eram os homens que ocupavam todos ou quase todos os cargos de relevo, mas as coisas têm mudado de forma gradual, abrindo uma série de novos horizontes de facilitismo carreirista sexual ao sexo masculino.

E pronto, jovem. Agora que sabes como as coisas se fazem, é só aplicares os princípios teóricos que aqui expus. E se o souberes fazer e conseguires, à custa deles, chegar ao topo, lembra-te de mim e poderás ser tu a fazer-me um jeitinho. Temos de ser uns para os outros, não é?

12.12.04

Um conto de Natal

-E depois, avôzinho?

-Depois, o Presidente da República disse ao primeiro-ministro que ia dissolver o parlamento, o que era uma maneira simpática de dizer que o primeiro-ministro ia deixar de o ser. Ora, o primeiro-ministro, que já andava na política há muitos anos, percebeu logo que o melhor que tinha a fazer era começar a fazer campanha eleitoral naquele preciso momento, aproveitando as vantagens da posição que ainda ocupava, e mostrar-se muito surpreendido e indignado com a situação, fazendo-se de vítima e pedindo a demissão de um governo com a honra ofendida pela vilania caudilhista presidencial. Afinal de contas, não havia motivo nenhum para uma decisão drástica como aquela porque a maioria que sustentava o Governo continuava estável e, ainda por cima, estava-se precisamente a entrar no momento em que se iriam começar a notar os primeiros sinais de saída da crise.

-E era mesmo assim, avô?

-Bom... é verdade que a maioria continuava tão estável como sempre estivera até porque os senhores deputados dos dois partidos e os colegas que integravam o Governo sabiam muito bem que a sua permanência no poder estava dependente da capacidade recíproca para engolir pequenos sapos e continuar a fingir que reinava a harmonia.

-Então quer dizer que o Presidente fez mal?

-Não, minha netinha, isto foram os argumentos das pessoas ligadas aos partidos que formavam a coligação governamental. A verdade é que houve uma sucessão impressionante de casos polémicos num período de tempo muito pequeno e, se a maioria da população não viu com bons olhos a nomeação do tal senhor Santana Lopes de que te falei para primeiro-ministro, as coisas depressa arranjaram maneira de piorar. E quando acontecia alguma coisa que fazia pensar que tínhamos batido no fundo como, por exemplo, quando um ministro resolveu opinar sobre a prestação de um comentador televisivo e esse comentário infeliz acabou por resultar directa ou indirectamente (e, se calhar, foi directamente) no afastamento desse comentador, logo se seguia outra coisa qualquer que nos mostrava que ou não tínhamos chegado ainda ao fundo ou tinham arranjado maneira de escavar mais uns metros de folga.

-Não percebo, avôzinho. É tão complicado. Afinal, o Presidente fez bem ou mal?

-Olha, fez a única coisa que se podia fazer. Por isso, só pode ter feito bem. Mas não te enganes. Este Presidente também não é nenhum génio político, coitado. Só chegou ao cargo porque as pessoas do partido se queriam livrar dele e assim sempre deixava terreno livre aos senhores que se seguiram. A candidatura à Presidência foi assim uma espécie de pontapé para cima que lhe aplicaram. Mas não lhe doeu nada e até ficou muito satisfeito porque era uma oportunidade que lhe davam para fazer uma das poucas coisas em que era realmente bom: apelar à calma e à tranquilidade, chamar a atenção para tudo e por nada e passar o tempo numa atitude de paizinho sábio da Nação, fazendo comentários que tinham tanto de oportuno como de inócuo. E, para lhe facilitar ainda mais as coisas, a sua maior oposição era o anterior primeiro-ministro que tinha passado dez anos a governar e de quem já todos estavam fartos mesmo que não viesse para a televisão comer Bolo-Rei de boca aberta e provar aos que ainda tinham dúvidas que é um homem seco e com muito mau feitio. O principal problema nesta situação é que o Presidente da República não teve a clareza de ideias ou a coragem para lidar com a situação na altura apropriada e do modo mais adequado, ou seja, quando o primeiro-ministro que veio antes deste de que te falo decidiu fazer de conta que não era nada com ele e fugir de maneira apressada para um poleiro mais alto e para paragens mais floridas onde os passarinhos são mais afinados e as batatas fritas são mais belgas. Era nessa altura que deveriam ter sido convocadas eleições, evitando-se este sarilho todo. Mas, coitado, como é um homem de bom coração, quis mostrar que se preocupava mais com o bem geral do país do que com o sucesso do seu partido e talvez nem mereça a suspeita de que adiou a dissolução do parlamento até ao momento em que o PS passou a ter condições de ganhar as eleições.

-Acho que já percebi. E o que acontece a seguir?

-Agora vai haver eleições e os portugueses lá terão, mais uma vez, de ir votar no partido mais capaz para tirar Portugal do lodo em que está atolado há tanto tempo que até já se afeiçoou a ele.

-E qual é esse partido?

-Isso é uma pergunta muito complicada. Mas o avô vai tentar explicar-te o melhor que sabe. Nestas coisas dos partidos, temos os de direita e os de esquerda. Normalmente, também há os do centro mas, como somos especiais, os nossos “do centro” estão ligeiramente descaídos para um dos lados. Na direita, temos o CDS que é um partido de valores. O facto de serem um partido de valores (a oposição à liberalização do aborto e do consumo de drogas, um certo eurocepticismo que deu lugar a uma eurocalmia com laivos de europalermice) é ideal para acomodar políticos e aspirantes que saibam que o poder é a sua vocação mas que não querem perder tempo com a chatice das ideologias. Basta dizer que sim a um punhado de “valores” e, a partir daí, são livres de dar asas à sua genialidade politiqueira. Depois vêm o PSD e o PS, o primeiro à direita, o segundo à esquerda (ou vice-versa... não é coisa que importe muito). Esta referência ao posicionamento de cada um destes partidos é apenas simbólica porque não existem diferenças reais em termos ideológicos entre um e o outro. Em vez da classificação antiquada em “partidos de direita” e “partidos de esquerda,” o PS e o PSD encaixam-se numa classificação que não é fixa e que sofre alterações periódicas. Um é o partido do governo e o outro o da oposição. Tudo o que for para além disto, incluindo as posições que cada partido defende (normalmente, as posições opostas às defendidas pelo outro para dar uma aparência de um certo conflito de ideias que fica sempre bem em democracia) está dependente da sondagem da semana.

-E à esquerda do PS, avô?

-À esquerda do PS temos dois partidos. Há o PCP que é uma espécie de centro de dia onde velhinhos saudosos dos bons velhos tempos do PREC vão jogando umas partidas de sueca entre um copo de marxismo bem cheio e um pires de leninismo bem tomado de sal e pimenta, animados pelas tropelias adolescentes dos jovens comunistas que, na sua maioria, só o serão até começarem a namorar com a filha daquele militante ferrenho do PSD, percebendo que o capitalismo até nem é tão mau como isso. E o Bloco de Esquerda onde um punhado de gente com ideias arejadas não consegue evitar ser abafado pela multidão que vota no Bloco de Esquerda porque é bem votar no Bloco de Esquerda, o movimento político com a maior concentração de óculos de massa em todo o mundo.

-Ó avôzinho, não te esqueceste dos Verdes?

-Não.

-Então e o que é que acontece agora? O coelhinho vai com o Pai Natal e o palhaço no comboio ao circo?

-Nada disso, minha neta. O circo é só em Fevereiro. Por enquanto, ficamos aqui sossegados a vê-los armar a barraca.

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