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19.12.04

Tradições do nosso Portugal

Há uma coisa de que nos poderemos sempre orgulhar. Já cá andamos há muito tempo, vivemos num dos países mais veteranos da Europa e, como não poderia deixar de ser, fomos dotados pela história de um leque vastíssimo de tradições e costumes que fazem dos portugueses o que são e contribuem para tornar únicos os habitantes deste cantinho à beira-mar prantado.

Com tamanha riqueza de costumes, é difícil escolher um como tema e podia escrever sobre, por exemplo, a arte de cuspir para o chão, o talento inato para improvisar casas-de-banho em qualquer lado ou daquele jeito tão nosso, tão português para nos enfiarmos pelo mar dentro, enfrentando o desconhecido com o objectivo nobre de dar novos mundos ao mundo ou de contribuir para o enriquecimento da taxa de afogamentos nas praias durante o Verão (dependendo da época histórica em análise).

Mas não o vou fazer.

Porque não me apetece.

E não vale a pena insistirem. Não me apetece pronto!

Em vez disso, vou falar de outra tradição legitimamente lusitana.

E começo por me dirigir aos mais novos.

Jovem, acabaste agora o curso de gestão de empresas que os teus pais queriam que tirasses com a condição de te pagarem depois um curso de teatro, que sempre foi a tua vocação. Preparas-te para enfrentar o mercado de trabalho. Sabes que será difícil. O país é pequeno. As mentalidades também. Vais ter de penar para conseguir uma posição à altura das tuas capacidades. Vais ter de morder o fel da rejeição laboral. Vais ter de te submeter a entrevistas de emprego humilhantes e a testes psicotécnicos absurdos. Vai ser mau. Vai doer. Mas tens de passar por isso.

Ou não.

Lembras-te do pai daquele colega de escola que toda a gente gozava porque tinha orelhas de abano e com quem tu nunca gozaste (pelo menos, não à frente dele)? Sim, o tal que era director daquela empresa. Por que não ligar ao teu bom amigo Dumbo e cobrar aqueles anos de amizade devota que lhe dedicaste com grande perigo para a tua reputação académica? Isso mesmo. Lembra-lhe o que sofria, os momentos passados a chorar pelos cantos da escola. Lembra-lhe como tu eras o único que o avisava que tinha passado o dia todo com um papel a dizer “O ORELHAS É UM CAMELO” colado nas costas. Claro está que só o fazias no fim do dia mas o que conta é que te preocupavas com o bem-estar dele.
E ele bem podia preocupar-se com o teu agora.

Sugere-lhe que dê uma palavrinha ao papá (o Dumbo Sénior) e lhe diga que conhece a pessoa ideal para aquela posição lá na empresa que vagou recentemente por causa daquele escândalo com as secretárias ucranianas e a lata de papaias em calda na arrecadação dos toners de fotocopiadora. Não há nenhuma posição vaga na empresa? Azar! Tu também tiveste de arranjar espaço no horário escolar, entre aulas, namoricos atrás do pavilhão e jogos de futebol de cinco, para segurar a auto-estima do Orelhas e impedi-la de rastejar pelo chão.

O que foi? Não conheces ninguém com familiares importantes e o bombo da festa da escola eras tu? E a pessoa mais importante que consegues arranjar na tua própria família é o tio Ernesto que foi sargento dos pára-quedistas e agora vive da reforma devida por ter um estilhaço de moçambicano alojado no abdómen?
Nada temas. É para pensar em alternativas que eu aqui estou.

Quem não tem cão, caça com gato (momento de sabedoria popular). E quem nem sequer tem gato, terá de caçar com o sucedâneo mais à mão. Sei lá... um coelho com garras aguçadas ou um peixinho dourado com vocação para perdigueiro.

Se não tiveste a sorte de nascer com “contactos” ou se as circunstâncias da vida não te fizeram adquiri-los, não está nada perdido. A amizade não é só uma coisa muito bonita. Também é útil. E toda a gente gosta de ter amigos (que nunca são demais). Por isso, ninguém se importará de ter mais um amigo, mesmo que esse amigo seja uma pessoa dotada de espírito visionário e consciente das vantagens que poderão advir da amizade certa na altura certa.

Imaginemos que anseias por uma carreira de sucesso como serralheiro. Tiraste um curso num centro de formação muito bom (desististe a meio mas foi como se o tivesses acabado), sabes perfeitamente que não és o serralheiro mais dotado do mundo mas, que raio, também tens direito à vida! Vai daí, começas a frequentar aquele certo e determinado bar onde sabes que a nata da serralharia passa as noites para descomprimir das serras... e brocas... e... o que quer que os serralheiros usem como
instrumentos de trabalho.

Se souberes jogar os teus trunfos, se souberes aplicar o charme que sabes que tens, se te conseguires integrar nas conversas certas, bajular as pessoas apropriadas, conseguir que te apresentem a certos e determinados indivíduos bem colocados, tens a carreira lançada.

É que nem precisas de te esforçar. Com amigos no sítio certo (nem é preciso serem muitos, basta um, desde que tenha uma rede de contactos vasta), tens biscates garantidos para o resto da vida. E nem precisas de saber distinguir entre uma fechadura de pistões e um cadeado de torniquete. Aliás, não precisas de saber nada de nada. A amizade é bonita a esse ponto. Só tens de te assegurar que a amizade que te levou onde estás nunca será rompida e que, se tiver mesmo de ser, que o seja por ti e para ser substituída por uma amizade mais proveitosa. A nobreza de sentimentos é uma das maiores qualidades que o ser humano pode ter.

O que foi agora? Não consegues fazer amigos? És um anti-social? Já estás a dificultar muito as coisas. Mas podes parar de choramingar como uma menina (a não ser que sejas mesmo uma menina, nesse caso podes continuar mas também não exageres).

Se não tens familiares (mesmo que não sejam teus) ou amigos em posição de te dar uma ajudinha, ainda tens uma hipótese. Para alguns, poderá ser um assunto delicado mas vou tentar explicar o melhor que sei e posso e espero não ofender ninguém.

Conheces alguém, por exemplo, aquela vizinha muito estúpida mas bem apessoada, que ocupe uma posição de relevo sem ter algo que se aproxime, ainda que minimamente, a competência? Nunca pensaste que era estranho alguém com estas condições ter uma posição daquelas? E nunca te recriminaste por ter pensado, numa vez ou noutra, que a explicação mais provável para um fenómeno tão estranho talvez fosse que a tua vizinha não tivesse grande pudor em trocar “jeitinhos” profissionais por “jeitinhos” de índole mais brejeira? Pois. Acredito que sim. Quem não teria feito o mesmo em circunstâncias iguais?

Mas chega de recriminações. Até porque o mais provável é que não haja motivo para remorsos. Se uma determinada pessoa parece não ter quaisquer competências para determinado cargo e, mesmo assim, o ocupa, sem ter um familiar ou amigo que possa por isso ser responsável, o mais provável é que tenha mesmo dado o corpo ao manifesto.
E tu também o podes fazer. Sem vergonhas. Sem remorsos. Afinal, roubar é pecado mas ninguém nos pode censurar por darmos o que é nosso, pois não? Mesmo que seja para obter esta ou aquela compensação.

Afinal, não é assim tão pouco habitual. E é uma prática bastante comum mesmo nas esferas mais elevadas. Por exemplo, na política ou nas artes onde este tipo de transacção é tão frequente que chega quase a ser procedimento oficial.
Basta ligar a televisão para ter exemplos frequentes. Nunca reparaste numa ou outra jovem apresentadora pouco arejada de ideias mas com um palminho de cara e mais palmo e meio de corpo que, de vez em quando, parece ter alguma dificuldade em sentar-se para fazer uma entrevista ao Roberto Leal que nos visita para apresentar o novo disco e dizer que nos tem no coração e que não leva a mal o que gozamos com a cara dele porque somos todos irmãos? Lá está. Ou se não é a dificuldade em sentar-se, terá decerto queimaduras provocadas pela fricção da alcatifa nos joelhos ou um fac-símile perfeito do tampo da secretária do patrão nas costas.

Mas não se pense que este tipo de prática apenas beneficia as carreiras profissionais de membros do “belo sexo.” Há alguns anos atrás, talvez fosse assim até porque eram os homens que ocupavam todos ou quase todos os cargos de relevo, mas as coisas têm mudado de forma gradual, abrindo uma série de novos horizontes de facilitismo carreirista sexual ao sexo masculino.

E pronto, jovem. Agora que sabes como as coisas se fazem, é só aplicares os princípios teóricos que aqui expus. E se o souberes fazer e conseguires, à custa deles, chegar ao topo, lembra-te de mim e poderás ser tu a fazer-me um jeitinho. Temos de ser uns para os outros, não é?

12.12.04

Um conto de Natal

-E depois, avôzinho?

-Depois, o Presidente da República disse ao primeiro-ministro que ia dissolver o parlamento, o que era uma maneira simpática de dizer que o primeiro-ministro ia deixar de o ser. Ora, o primeiro-ministro, que já andava na política há muitos anos, percebeu logo que o melhor que tinha a fazer era começar a fazer campanha eleitoral naquele preciso momento, aproveitando as vantagens da posição que ainda ocupava, e mostrar-se muito surpreendido e indignado com a situação, fazendo-se de vítima e pedindo a demissão de um governo com a honra ofendida pela vilania caudilhista presidencial. Afinal de contas, não havia motivo nenhum para uma decisão drástica como aquela porque a maioria que sustentava o Governo continuava estável e, ainda por cima, estava-se precisamente a entrar no momento em que se iriam começar a notar os primeiros sinais de saída da crise.

-E era mesmo assim, avô?

-Bom... é verdade que a maioria continuava tão estável como sempre estivera até porque os senhores deputados dos dois partidos e os colegas que integravam o Governo sabiam muito bem que a sua permanência no poder estava dependente da capacidade recíproca para engolir pequenos sapos e continuar a fingir que reinava a harmonia.

-Então quer dizer que o Presidente fez mal?

-Não, minha netinha, isto foram os argumentos das pessoas ligadas aos partidos que formavam a coligação governamental. A verdade é que houve uma sucessão impressionante de casos polémicos num período de tempo muito pequeno e, se a maioria da população não viu com bons olhos a nomeação do tal senhor Santana Lopes de que te falei para primeiro-ministro, as coisas depressa arranjaram maneira de piorar. E quando acontecia alguma coisa que fazia pensar que tínhamos batido no fundo como, por exemplo, quando um ministro resolveu opinar sobre a prestação de um comentador televisivo e esse comentário infeliz acabou por resultar directa ou indirectamente (e, se calhar, foi directamente) no afastamento desse comentador, logo se seguia outra coisa qualquer que nos mostrava que ou não tínhamos chegado ainda ao fundo ou tinham arranjado maneira de escavar mais uns metros de folga.

-Não percebo, avôzinho. É tão complicado. Afinal, o Presidente fez bem ou mal?

-Olha, fez a única coisa que se podia fazer. Por isso, só pode ter feito bem. Mas não te enganes. Este Presidente também não é nenhum génio político, coitado. Só chegou ao cargo porque as pessoas do partido se queriam livrar dele e assim sempre deixava terreno livre aos senhores que se seguiram. A candidatura à Presidência foi assim uma espécie de pontapé para cima que lhe aplicaram. Mas não lhe doeu nada e até ficou muito satisfeito porque era uma oportunidade que lhe davam para fazer uma das poucas coisas em que era realmente bom: apelar à calma e à tranquilidade, chamar a atenção para tudo e por nada e passar o tempo numa atitude de paizinho sábio da Nação, fazendo comentários que tinham tanto de oportuno como de inócuo. E, para lhe facilitar ainda mais as coisas, a sua maior oposição era o anterior primeiro-ministro que tinha passado dez anos a governar e de quem já todos estavam fartos mesmo que não viesse para a televisão comer Bolo-Rei de boca aberta e provar aos que ainda tinham dúvidas que é um homem seco e com muito mau feitio. O principal problema nesta situação é que o Presidente da República não teve a clareza de ideias ou a coragem para lidar com a situação na altura apropriada e do modo mais adequado, ou seja, quando o primeiro-ministro que veio antes deste de que te falo decidiu fazer de conta que não era nada com ele e fugir de maneira apressada para um poleiro mais alto e para paragens mais floridas onde os passarinhos são mais afinados e as batatas fritas são mais belgas. Era nessa altura que deveriam ter sido convocadas eleições, evitando-se este sarilho todo. Mas, coitado, como é um homem de bom coração, quis mostrar que se preocupava mais com o bem geral do país do que com o sucesso do seu partido e talvez nem mereça a suspeita de que adiou a dissolução do parlamento até ao momento em que o PS passou a ter condições de ganhar as eleições.

-Acho que já percebi. E o que acontece a seguir?

-Agora vai haver eleições e os portugueses lá terão, mais uma vez, de ir votar no partido mais capaz para tirar Portugal do lodo em que está atolado há tanto tempo que até já se afeiçoou a ele.

-E qual é esse partido?

-Isso é uma pergunta muito complicada. Mas o avô vai tentar explicar-te o melhor que sabe. Nestas coisas dos partidos, temos os de direita e os de esquerda. Normalmente, também há os do centro mas, como somos especiais, os nossos “do centro” estão ligeiramente descaídos para um dos lados. Na direita, temos o CDS que é um partido de valores. O facto de serem um partido de valores (a oposição à liberalização do aborto e do consumo de drogas, um certo eurocepticismo que deu lugar a uma eurocalmia com laivos de europalermice) é ideal para acomodar políticos e aspirantes que saibam que o poder é a sua vocação mas que não querem perder tempo com a chatice das ideologias. Basta dizer que sim a um punhado de “valores” e, a partir daí, são livres de dar asas à sua genialidade politiqueira. Depois vêm o PSD e o PS, o primeiro à direita, o segundo à esquerda (ou vice-versa... não é coisa que importe muito). Esta referência ao posicionamento de cada um destes partidos é apenas simbólica porque não existem diferenças reais em termos ideológicos entre um e o outro. Em vez da classificação antiquada em “partidos de direita” e “partidos de esquerda,” o PS e o PSD encaixam-se numa classificação que não é fixa e que sofre alterações periódicas. Um é o partido do governo e o outro o da oposição. Tudo o que for para além disto, incluindo as posições que cada partido defende (normalmente, as posições opostas às defendidas pelo outro para dar uma aparência de um certo conflito de ideias que fica sempre bem em democracia) está dependente da sondagem da semana.

-E à esquerda do PS, avô?

-À esquerda do PS temos dois partidos. Há o PCP que é uma espécie de centro de dia onde velhinhos saudosos dos bons velhos tempos do PREC vão jogando umas partidas de sueca entre um copo de marxismo bem cheio e um pires de leninismo bem tomado de sal e pimenta, animados pelas tropelias adolescentes dos jovens comunistas que, na sua maioria, só o serão até começarem a namorar com a filha daquele militante ferrenho do PSD, percebendo que o capitalismo até nem é tão mau como isso. E o Bloco de Esquerda onde um punhado de gente com ideias arejadas não consegue evitar ser abafado pela multidão que vota no Bloco de Esquerda porque é bem votar no Bloco de Esquerda, o movimento político com a maior concentração de óculos de massa em todo o mundo.

-Ó avôzinho, não te esqueceste dos Verdes?

-Não.

-Então e o que é que acontece agora? O coelhinho vai com o Pai Natal e o palhaço no comboio ao circo?

-Nada disso, minha neta. O circo é só em Fevereiro. Por enquanto, ficamos aqui sossegados a vê-los armar a barraca.

1.12.04

A restauração de 1640

Foi mais ou menos assim.

Tudo começou com a morte do cardeal D. Henrique em 1580. Como nem este, por ser cardeal e sexagenário, nem D. Sebastião, por ser esquisito, deixaram sucessores, o trono de Portugal foi entregue ao rei Filipe de Espanha que se comprometeu a respeitar a independência do país, reinando separadamente em Espanha (como Filipe II) e em Portugal (como Filipe I).

Mas a promessa não foi cumprida. Graças à inexistência de uma corte em Lisboa, a vida cultural estagnou e a aristocracia não podia estar senão descontente. Os impostos determinados por Madrid cedo se tornaram insustentáveis enquanto ingleses e holandeses se apropriavam de territórios portugueses na Ásia e América.

Mesmo assim, as coisas permaneceriam na mesma durante mais dois Filipes (o II e o III ou o III e o IV, dependendo da opção pela numeração nacional ou castelhana).

Em 1637, nas altercações de Évora, a população daquela cidade alentejana revoltou-se contra as autoridades, forçando o rei a enviar tropas para serenar os ânimos à força de traulitadas. Este levantamento popular teve uma característica curiosa que foi a justificação da revolta com as queixas contra a administração espanhola de um conhecido maluquinho eborense. O nome desse maluquinho era Henrique Chaves.
Não valeu de nada. Nada mudou e nada mudaria durante mais algum tempo. Foi preciso esperar sentado pelo dia da restauração.

Naquele tempo, o monarca era representado em Portugal por um vice-rei, cargo ocupado pela prima de Filipe III (ou IV), a duquesa de Mântua. Em Espanha, nas vezes do rei, mandava o conde-duque de Olivares que, como era pouco dado a politiquices e se sentia melhor participando em conferências sobre doenças sexualmente transmissíveis e fazendo apelos sucessivos à calma e à tranquilidade, entregou o governo do país vizinho (dele, ou seja, o nosso) a um tal Miguel de Vasconcelos, conhecido marialva lisboeta em que muitos viam luzir grande talento para a causa pública, apesar de nunca ter dado mostras disso, antes pelo contrário.

Miguel pertencia àquele tipo de pessoas que gosta de aparecer mas que gosta de o fazer com um certo nível. Não lhe bastava tornar-se conhecido por aparecer na televisão ou por lançar suspeitas de sodomia infantil sobre celebridades da época junto dos padres do Santo Ofício (na altura, a Igreja ainda via com maus olhos o abuso sexual de menores). O ideal seria um cargo governativo que lhe permitisse, ao mesmo tempo, ir aparecendo e ganhando notoriedade e dar-se ares de quem está muito empenhado no bem comum (até porque não há mulher nenhuma, da rameira mais piolhosa à cortesã mais perfumada, que resista a um fidalgo prestável e cordato).

E o nosso bom Miguel de Vasconcelos, fidalgote e bom rapaz, lá conseguiu chegar onde tanto queria, saltando de poleiro em poleiro. Começando como mentor de um grupo de mariolas que se divertia a jogar à bola ali para os lados do lugar de Alvalade, passando pelo areal da Figueira da Foz (já célebre no séc. XVII) e acabando por chegar ao destino mais almejado por qualquer pelintra minimamente ambicioso: Lisboa, sede tradicional do poder português e continuando a ser sede do pouco poder que por cá tínhamos em época de domínio espanhol.

Quando vagou a posição de “secretário de Estado do reino de Portugal” por o antigo titular ter fugido para terras da Flandres em busca de uma cura para a peste parvónica que o afectava, conseguiu que Olivares lhe desse o benefício da dúvida e o nomeasse em nome da manutenção da estabilidade e apesar de todos lhe dizerem que faria melhor serviço se atirasse o título para uma pocilga e deixasse que os suínos o disputassem/chafurdassem entre eles. Fez-se amigo da duquesa de Mântua, também muito amiga do outro (o que se pirou para Bruxelas), o que lhe valeu o repúdio dos seus pares pela prontidão em se aliar a alguém que sempre revelara um feitio torcido e oportunista e que nunca se coibira em semear injúrias entre a gente importante da lusitanidade oprimida, mesmo quando essas injúrias até nem eram tão injuriosas quanto isso.

A respeito desta duquesa, caberia também tecer algumas considerações oportunas acerca dos vários motivos que a tornaram tão mal vista aos olhos dos nossos. Começou com a sua chegada ao país, numa época em que ainda nem se tinha sentado no cadeirão do vice-rei. Passeava-se pelas feiras, trocando os vestidos e as cabeleiras empoeiradas por trajes de lavrador, distribuindo beijos e apertos de mão desde a ralé mais miúda aos proprietários rurais mais abastados, sempre atenta às câmaras que por perto pudessem estar. Graças a isto, caiu no goto ao campesinato. Mas só até começar realmente a ter poder. Mal se viu instalada, a duquesa tratou de esquecer convenientemente as promessas feitas, fez o que pôde para piorar ainda mais a vida dos que a tinham apoiado, encomendou uma meia dúzia de submarinos modernaços e instalou-se num forte ali para os lados da marginal. Foi mais ou menos por esta altura que começaram a circular boatos de que a duquesa se passearia de noite por um pitoresco jardim público da capital, vestida de homem e com as feições disfarçadas por uma peruca de rolos que lhe chegava ao meio das costas. Era assim a duquesa.

Voltemos ao nosso homem.

Miguel de Vasconcelos podia ser muita coisa mas não era parvo. Estava perfeitamente consciente de que, mesmo sendo muito folclórico e bem-falante, não percebia grande coisa dessas chatices da governação a não ser, claro está, que se tratasse da governação de saias e colchetes. Disso sabia ele o suficiente para aceitar aprendizes.

Portanto, tinha duas alternativas. Ou se rodeava de gente competente que governasse por ele e cujos méritos eventuais pudesse assumir (o que era complicado porque, como já se disse, o país estava estagnado) ou arranjava uma pandilha de compinchas sem grande jeito para a coisa mas que lhe permitissem esquivar-se a responsabilidades, varrendo a culpa para debaixo do tapete de cada um destes. Foi isto o que fez.
E os resultados foram o que não poderiam deixar de ser. Uma série infinita de desastres, embaraços, escândalos, polémicas e calamidades várias.

E como também não poderia deixar de ser, o povo, que já estava descontente, ainda mais descontente ficou. Aproveitaram-se disso os aristocratas que sempre quiseram pôr os espanhóis para fora e que só não o tinham feito antes porque não tinham condições para isso, ocupados que estavam em resolver questões de organização interna relacionadas com escutas telefónicas e prisões de barões de fidalguia elevada por motivos muito pouco nobres.

Quando as coisas se organizaram, estabeleceu-se a conjura com o objectivo de correr com o Filipe e seus sequazes para lá de Elvas e da vista de Badajoz. Eram quarenta os conjurados. Moviam-nos motivos variados. Desde a ânsia patriótica ao egoísmo da comodidade pessoal. Muitos participaram na conjura só porque não iam à bola com a cara de Miguel de Vasconcelos e da duquesa. E ninguém os pode censurar pois realmente não eram caretos que se apresentassem nem no corso carnavalesco mais desbragado.
Fez-se a revolução. O povo saiu à rua. Os espanhóis, tomados de surpresa por tamanho entusiasmo, renderam-se. A duquesa de Mântua pôs-se ao fresco anunciando que, pelo menos, tinha acabado sozinha com o serviço militar obrigatório e que iria concorrer sozinha às próximas eleições enquanto que o conde-duque de Olivares estava ocupado com a visita a um centro de ocupação de tempos livres para idosos, apreciando a renda de bilros de uma septuagenária, e quando deu por ela já estava o facto consumado e pouco mais podia fazer do que assinar por baixo.

Entre os revoltosos, escolheu-se um descendente do rei D. Manuel I, o duque de Bragança, para ocupar o trono. Dizia-se que este, o futuro rei João IV, também não era particularmente dotado para a governação mas, pelo menos, não vinha com uma duquesa anexada, o que já de si constituía uma melhoria.

E quanto ao nosso Miguel de Vasconcelos? Bom... deram com ele escondido dentro dum armário armado com uma carabina. Desarmaram-no e atiraram-no por uma janela, sendo recebido com profunda estima e amizade pelos populares barulhentos que se amontoavam na rua.

E assim terminou uma carreira política exemplar. Não viveram felizes para sempre mas não terá andado muito longe.

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